O Resgate de um Demônio

 
Jamais pensei vislumbrar, no tempo certo, as mazelas que renasceriam de minhas lutas centenárias pela libertação da minh´alma do jugo terrível que carrego há séculos imorredouros.

Urge que seja hoje, no encontro com meu algoz, o Sinistro, que conquistarei a tão sonhada liberdade que há tantas trevas sucessivas me renega nesta vida (?) privada dos mais simples encantos que a cada criatura se há guardado.

Renascer, eis o que almejo, visto que o reingresso na vida dos homens, na carne, é o único meio do ser, nos atropelos existenciais infindáveis, depurar-se sucessivamente até atingir o encanto sublime de libertar-se das mazelas humanas ao atingir a glória de ser declarado santo, alma pura, anjo, espírito de luz, ou outra denominação qualquer, dentre as muitas, que os homens dão às entidades que atingiram o mais alto grau de perfeição, conforme as crenças que cultivam.

Ainda devia esperar um pouco mais, neste descaminho de trevas, pontuado pelo lamento de almas abandonadas, sórdidas, carregando em si multidões indizíveis de pecados esperando pela passagem do Senhor daquela zona umbralina, o Sinistro, como o chamávamos.

Naquele momento, em uma curva da sinuosa estrada que cortava aqueles abismos, enquanto distraído, segurando o arpão com ponteira elétrica que me deram, para torturar e comandar os infelizes daquelas paragens, eis que um intenso brilho se mostra sobre um vale logo abaixo.

Deduzi que eram eles, os guias, os puros, os anjos, como queiram, vindos em mais uma expedição sobre nosso vale de dor e lamentos para efetuar o resgate de almas. Queria também que a minha fosse resgatada, mas não estava disposto a cumprir com o ritual que os atraía.

Intimamente, carregava em mim aquele completo descrédito pelas coisas do espírito, dentre elas, o hábito da oração – o veículo que liberta. Na verdade, não é o que liberta, mas é um ato de submissão à vontade de um Ser Supremo, que a tudo governa, e cuja autoridade nunca aprendi a reconhecer.

Reduzido assim, àquela forma de pensar, via-me subjugado àquele reino de negrume colossal.

Algo, no entanto, devia ter mudado em mim, pois agora percebia a chegada dos iluminados, e não tinha mais ascos de fugir à sua presença. Também sabia da inutilidade de lutar abertamente contra os mesmos. De modo incompreensível para mim, nossas armas não faziam efeito contra os escudos de energia que naturalmente portavam. Envolviam os sofredores que rogavam seu auxílio, merecendo o justo resgate e, a partir daí, eram englobados por aquela extrema luminosidade desaparecendo da nossa influência.

Reconheço serem infinitamente superiores. Sinto deles emanar, agora que posso percebê-los com maior nitidez, algo de bom e justo.

Apesar dessa impressão, não me sinto, ainda, digno de elevar-lhes meus pensamentos embora me veja, a cada dia, sendo possuído pelo desejo de sair daquele lugar, tendo como outro meio de fuga implorar ao Sinistro que me liberte.
Ganhando força, no entanto, estava aquela outra forma, a de me render a uma prece, a uma oração, submetendo-me ao Deus que tanto reneguei na Terra sob os auspícios de defender uma ponta de opinião que não mais suportava.

Unindo todas as minhas forças, no entanto, sentindo que aquela luz que emanavam era de fato boa, vendo nela uma oportunidade de escape sem depender da autorização do Senhor das trevas, aproximei-me em velocidade colossal – um dos meus dons naquela forma alada – dos outrora inimigos.

Ao ver-me para eles migrando, o Sinistro, que acabara de aparecer sobre o Vale, devendo ter sido alertado da presença dos inimigos pelos seus vários emissários em formato morcegal. Do alto, envolto naquela atmosfera densa e fétida, exalando redemoinhos plúmbeos de sua esfera psíquica, o Trevoso bradou contra minha atitude:

- Infame traidor! Como ousa se aproximar deles sem lutar? Por acaso pretende fugir ao meu comando? Verás como sei castigar os que se atrevem a trair-me... – Nisso, lançou uma teia de psiquismo negro visando aplacar-me para sempre sobre as suas garras. Não poderia lutar, vendo aquela densa e apavorante forma de mancha aproximar-se de mim, cruzei os braços diante dos olhos e, sem ponderar, de modo instintivo, de um instinto que havia esquecido guardar, disse mentalmente com uma força que não sabia deter, as palavras que me libertaram: ¨Meu Deus¨.

A partir daí, fui como que sugado pelas forças da luz e, juntamente com os mesmos, resgatado para esferas superiores em novo estágio no mundo espiritual, onde, daqui aguardo pela oportunidade de poder novamente voltar à carne em um corpo físico que me teste, em uma sociedade injusta e corrupta, naquela terra chamada Brasil, onde poderei provar o meu valor moral e tornar a evoluir sempre e sempre...