O morcego na lama
― A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!
(Augusto dos Anjos)
Certa noite, um grupo de garotos brincava num parque próximo a uma plantação de bananeiras. A brincadeira consistia em ficar balançando, na posição vertical, um pedaço grande de bambu, de forma que pudesse ser ouvido o som produzido pelo objeto, semelhante a um uivo, ou mesmo o som do vento assobiando. Dessa forma, eles atraíam os morcegos que toda noite voavam em volta das bananeiras à procura de alimento.
Quando os morcegos passavam próximos ao bambu, que girava bastante veloz, levavam uma pancada tão forte que caíam a vários metros de distância, vítimas de uma queda fatal.
Um desses morcegos teve um azar maior ainda de cair no meio de uma grande poça de lama.
Ficou todo soterrado de lama, com exceção da cabeça, que ficou virada para cima, olhando a lua e o céu estrelado.
Suas asas cobertas de lama ficaram tão pesadas que seu esforço em erguê-las era inútil. A lama, para o morcego, parecia argila. E em sua aparente ignorância de não entender o que estava acontecendo, sua cabeça girava com as estrelas, tamanho foi o impacto do bambu (na cabeça!) que o deixou mais próximo dos astros.
O morcego queria dizer aos garotos que aquela ignorância humana tinha muito o que aprender com a filosofia dos mamíferos voadores hematófagos.
Ele queria dizer que sua capacidade em guiar-se no escuro; em sobreviver; em se alimentar; em voar em silêncio; em viver em grupos; tudo isso tinha uma complexidade científica de difícil entendimento para a humanidade.
Além disso, toda a sua pele; toda a sua carne; todo o seu sangue; todos os seus ossos; todos os seus átomos; tudo isso era relativo. O que o morcego tinha o próprio homem também herdou das origens!
O morcego queria explicar tudo isso aos homens, mas ele vivia num mundo onde seu único diálogo era o silêncio e a escuridão.
De repente, o morcego viu-se rodeado de átomos arrumados e organizados de forma diferente da sua. Eram os mesmos átomos que ele, com sua cabeça levantada, via nas estrelas e na lua, mas não tão longe nem tão complexos.
Esses átomos estavam ao seu redor, cobrindo seu corpo putrefato, devorando sua cabeça. Eram vermes que vinham da lama para devorá-lo. E essa lama cheia de podridão e vermes parecia uma massa viva, parecia um vômito que ganhou consistência; parecia a origem do mundo! E em vão o morcego tentava se levantar. Afundava cada vez mais em seu malogro. A noite passava e o morcego continuava afundando, olhando para as estrelas e tendo seu corpo putrefato sendo puxado cada vez mais para baixo pelos vermes, pela lama viva!
O crepúsculo se aproximava. O morcego ia ver o sol! E para aquele a quem chamam de Deus o morcego queria gritar mil blasfêmias.
O sol, a lama, os vermes, o bambu, os garotos; tudo isso para o morcego era Deus. E em tudo isso estava Deus, comendo suas entranhas, misturando-se com o seu sangue e fazendo parte de sua decrepitude.
O morcego queria dizer tudo isso aos homens, queria dizer que não acreditava no Deus deles, que existia um maldito Deus maior, um maldito nada que preenchia com átomos o seu próprio vazio.
O sol desponta no horizonte. O morcego quer gritar todo o seu ódio para com Deus e a humanidade. Ele quer provar que também pode ter cérebro e que a razão sofre contínuas metamorfoses.
Já é meio-dia. O morcego percebe que vai morrer. Mas também percebe que a morte não existe, que tudo apenas se transforma.
Como o morcego queria que o sol queimasse logo sua cabeça cheia de vermes! Queimando os vampiros da existência, sua liberdade é garantida no fogo de seu ódio. E percebendo que vai afundar de vez, num último adeus ao mundo, o morcego queria gritar. Mas ele vivia num mundo onde seu único diálogo era o silêncio e a escuridão.
O morcego afunda. Sorumbático. Morre...
O morcego... O morcego...
A alma do morcego agora voa sobre a humanidade.
Testemunhando um mundo de monstros, o morcego vê a humanidade banhada no sangue dos sofrimentos. Tudo ao redor é alimento. Tudo ao redor é a alma da natureza manipulando os homens num caminho escabroso. Tudo ao redor é nada. E a alma do morcego percebe que Deus não existe, que nada é sagrado. O mundo está vivo e parece uma lama, que se transforma.
A alma do morcego vê que as criações não passam de transformações. Tudo já existia numa química assombrosa; as idéias já conspiravam numa matemática oculta; os sentimentos já se expressavam nas imagens das almas dos organismos!
E vendo que a realidade podia ser modificada, a alma do morcego idealizou sua fantasia:
É dia. A alma do morcego – imensa! – ganha forma no entenebrecimento da nódoa de sua matéria.
Taciturno, o morcego voa sobre a humanidade. E sua sombra, por onde passa, vai deixando um rastro de morte e desolação. E desse rastro vai se formando uma grande lama, uma grande gosma, uma grande massa misturada com o fel da humanidade. E dessa lama, dessa gosma, dessa massa, o morcego manipula sua ressurreição...
...
(Publicado no livro "Os contos proibidos do Sr. Arcano")