Fazendo a curva

Um dia eu li num jornal uma frase que explicava a beleza de certa atriz: Ela acordou cedo.

Como deixei a porta aberta, alguns neurônios em tratamento de surto vieram sacudir as ideias. E imaginei o seguinte:

Pouco antes do “desce lá e arrasa”, precisava recolher tudo o que fosse necessário na bagagem. Para isso acordava-se cedo, pois longas filas se formavam. Todo mundo sabe que as melhores coisas acabam cedo.Dormi demais.

Davam-nos algumas sacolas e nela colocaríamos o que nos fosse dado.

Havia fila pra tudo. Sem muito tempo pra escolher,já que eram muitos departamentos e com tanta gente, comecei pelo que me pareceu mais óbvio: Altura. Quando estava próxima, algumas mulheres à frente desistiram e uma que ficou passou a conversar comigo,mas não conseguia ouvir muito do que falava. Ela escolheu a altura desejada e quando chegou minha vez o funcionário avisou que só tinha altura anã. Já ia protestar quando houve nova desistência. Não era muito maior que o que tinha, porém me salvou uns dez centímetros.

A próxima fila era do cabelo. Me dei bem. Algumas ainda acreditavam na moda onde os cabelos eram curtos ou enrolados. Escolhi cor clara e liso,mas avisaram que durante o tempo isso poderia mudar. Dei de ombros. A moça da frente disse que preferia negro e muito liso pois a lembrava Cleópatra. E acho que foi neste instante que despejaram numa sacola grande quantidade de riso pra mim. Só pode.

Depois fomos pra fila do nariz e orelhas. Os narizes tinham nome e o mais bonitinho que achei foi um de nome “batatinha”. Também não sei explicar por que de tanto risinho, mas tudo bem, a fila andou, isso que importa. Quando me deram as orelhas avisaram que aquele esparadrapo era pra segurar até cicatrizar. Sei lá por que não segurei e me dei conta que carregava uma sacola pesada de teimosia e não me lembro de ter entrado nesta fila. Mas enfim.

Até que chegamos a uma fila pequena, bem pequena. Outra ao lado parecia não ter fim. A pequena era da inteligência. A infinita era daquela região traseira que eu soube depois chamar-se “bunda”. A moça que ia sempre à frente correu para esta fila e me pediu que colocasse numa sacola dela,um pouco de inteligência. Na minha vez, o funcionário escorregou e acabou por encher tanto a minha sacola com inteligência que mal podia carregá-la. Para a moça sobrou um tiquinho, mas deu meia sola. Já na fila da bunda...Bem, sem comentários.

Fila da paciência. Longa, muito longa. Pessoas falavam sem parar, fumavam, cuspiam ao falar, riam alto e ouviam funk sem fone de ouvido.E a fila travou, não andava. Pedi à moça que guardasse meu lugar enquanto eu ia pra fila menor ao lado, a dos seios. Mais uma vez me dei bem,mas esqueci de pegar os da moça. Coitada, quando foi lá só tinha uns pinguinhos. Em compensação me trouxera dois dedos de paciência que, segundo ela, seriam suficientes apenas para cuidar dos pais na velhice, se necessário, e para filhos, quando os tivesse. Ok, no tamanho exato então.

Passando pelo humor, resolvemos observar melhor os detalhes de toda aquela confusão enquanto aguardávamos nossa vez. Fui tecendo comentários e ela ria muito; fui comentando e ela rindo até que passamos pela fila e eu nem notei que enchera mais uma sacola. A dela nem tanto, porque só conseguia rir e com isso passou que nem sentiu as gramas de humor que lhe deram.

A moça se encantou com a fila da vaidade e eu, achando-a muito enfadonha, migrei para outra onde tudo era tão bonito, inspirador e de uma alegria contagiante. Enchi a sacola,claro e só ao final soube do que se tratava: Amor incondicional.

Assim, chegamos ao final e nos deparamos com alguns superiores. Juntas, ouvimos deles que estava próxima a hora de descer. Ansiedade derramou de uma das minhas sacolas e fui chamada a atenção. A tal moça iria primeiro e eu, dois anos mais tarde. Inconformada, ela começou a chorar e pedir pra ir junto comigo depois. Os superiores disseram que não, isso não estava nos planos do chefe. Chorou mais ainda e me surpreendeu, pois não a vi na fila da emoção. Bastante tocados com a insistência, um deles se adiantou e revelou:

_ Ok, serão irmãs, mas não gêmeas. Uma vai primeiro, a outra mais tarde.

Enxugando as lágrimas e depois de muitos abraços, a moça descobriu que se atrasara na fila do amor. E agora? Tudo bem, respondi. Divido com você.

Ainda teve um rapazinho que vinha depois de nós e igualmente insistiu para vir junto. Foi atendido sob protestos de ser a última insistência do dia, nenhuma outra seria aceita.

Quanto a este, não posso citar muitos detalhes. Notei que uma de suas sacolas estava furada e totalmente vazia já. Algo havia ficado pelo caminho. Como não sei o que foi, prefiro não descrevê-lo. Sei lá, vai que tenha sido a do humor,né.

O tempo passou e agora é a minha vez de contornar a curva, cinquenta anos depois. Mas continuamos juntos na viagem fantástica que é a vida. Cada um num vagão, mas nos encontrando de vez em quando em alguma estação.

Cris Carvalho.

Cristiane Maria
Enviado por Cristiane Maria em 25/10/2012
Reeditado em 25/10/2012
Código do texto: T3950892
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