DIA DE ANO NOVO




Irmão Joaquim era da boca torta para um lado, por relapso e não por descrença: congestão, devido acabar a janta e se olhar no espelhinho de barbear. Podia ser pai do irmão Marciano, porque a mãe, viúva, deu loucura e saiu espiritada pelo mundo, largou o caçula engatinhando.

Além do apego, tomava conta e dava toda instrução de valia. Mas, a facilidade de irmão Joaquim sempre foi a de passar ao menino as crendices e simpatias aprendidas com os modos dos antigos.

Que nem assim: como se dava a entrada do ano novo, já tinha visto no almanaque a ocorrência de eclipse no princípio de janeiro. Por isso, orientou irmão Marciano para pôr carvão de lenha debaixo das galinhas chocando, e garrafa de vidro branco nos quatro cantos da roça. Porque a lua, tapando o sol, agourava os ovos e enferrujava a plantação.

Fazia desse modo.

Irmão Marciano ia aprendendo desde pequeno. Não podia mijar andando, para não dilatar o tamanho do caixão, quando morresse. Jogava o dentinho de leite no telhado, para o outro nascer forte no lugar. Não corria em marcha-ré, senão a mãe morria – uma danação boba, porque essa louca e sumida, Deus decerto já tinha levado. Mas era para aprender, depois corrigir os meninos, filhos dele.

Irmão Joaquim mandava pôr três pedrinhas de sal no fogo para a acauã calar no brejo, sendo o cantar dela o mau-sinal de seca braba. O beija-flor entrava em casa, saía pela janela, era aviso de visita boa. Não permitia fulano estranho ver o tacho de sabão, nem queijo fresco na forma, para não azangar um nem inchar o outro, com tanto mau-olhado. E torcia o pano-de-prato atrás da porta da cozinha, para a visita enjoada não se demorar.

Numa época, o compadre Henrique apareceu mordido de cobra urutu. Irmão Joaquim mandou esconder a notícia, sem deixar a comadre descobrir, por estar gorda de neném, com riscos de principiar sangramento e a barriga destampar-se abaixo.

Noutra vez, o céu quase derretendo de chuvarada no casamento da Lindaura, filha do Capataz, a coitadinha desesperada para não molhar o vestido de noiva, irmão Joaquim ensinou simpatia de largar um ovo na cabeça do toco e fazer promessa para Santa Clara. No instantinho, a chuva foi afinando-se, até parar. Lindaura entrou bonita na Igreja.

Desde pequenininho, irmão Marciano desenvolveu-se na convivência com os presságios do irmão Joaquim. E hoje era dia-de-ano-novo.

Amanheceu o dia, irmão Joaquim já veio de lá com uma preocupação a mais: justo num dia assim tão assinalado, ele havia de-noite sonhado com carne crua e arrancação de dente dele mesmo. Sonho agourento, de morte certa, alguém conhecido. Então, alertou irmão Marciano: no dia-de-ano-novo, ocorrendo trovoadas na parte da manhã, sinal de morrer gente nova; trovões na parte da tarde, aviso de morte dos mais velhos. Cedo não choveu; mas, baseando cinco da tarde, agarrou ventania de chuva e raio. Não sentiu nem cisma, pois havia benzido o corpo para fechar de morte horrível. Mesmo assim, recomendou ao irmão Marciano, que pegasse a peneira de taboca e pusesse debaixo da cama, para afugentar os perigos dos coriscos. Mas a providência foi tardia: um relâmpago fez clarão, entrou pela chaminé e veio direto sapecar o mais novo.

No velório, terminando de rezar o terceiro terço de corpo presente, assinalou na testa as cruzinhas do Pelo-Sinal e beijou a testa do irmão. À saída do enterro, notou o morto em estado de morno, muito molambo, recusando a frieza e a rigidez dum defunto. Solicitou três varinhas verdes de laranjeira, para colocar junto do corpo no caixão.

O cortejo a caminho, quase ninguém agüentava sem bufar com o peso, cada vez mais pesado. Cortou outras três varinhas verdes, agora de assa-peixe, com as quais surrou o caixão, para cortar as vontades do morto em levar junto outro membro da família.

À cova da sepultura, todos os presentes acompanharam irmão Joaquim no gesto de jogar lá dentro três punhadinhos de terra. Assinalaram o Nome-do-Pai, foram retirando-se um a um, consternados.

De-noitinha, irmão Joaquim tomou banho de bacia, para lavar do corpo os maus espíritos trazidos encalacrados lá do cemitério. Depois, dormindo a primeira vez sozinho, permaneceu ali na cama, olhos esbugalhados até sem suspirar, escutando o irmão Marciano: - Chelep! chelep!, também se lavando na água da bacia, onde o irmão Joaquim esquecera de esvaziar, quem sabe de puro querer que ele, o mais novo, viesse visitá-lo pelo menos nessa vez.




Conto integrante do livro "Fulanos e Sicranos", 2ª edição, reeditado no Recanto das Letras.






Milton Moreira
Enviado por Milton Moreira em 01/01/2013
Código do texto: T4062487
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