Sob o manto da chuva

O corredor escuro e sujo de uma espelunca qualquer; um prédio abandonado na zona portuária do Rio de Janeiro; sujeira pelo chão de ladrilho quebrado e tacos podres, restos de reboco da parede caídos, fios soltos nas paredes e no teto; algumas portas de madeira fechadas e outras abertas ou quebradas, por onde passavam os únicos laivos de claridade de um dia que parecia estar sendo punido pelos senhores da chuva.

A roupa branca já estava completamente desfigurada, coberta de lama e teias de aranha que ele ia retirando da frente com as mãos; a água da chuva vazava pelo teto em diversos pontos como se fossem pequenas cascatas, inundava parcialmente o corredor e gotejava dos bocais de onde algumas lâmpadas quebradas pendiam, mas ele já esteve em lugares muito piores.

Vez por outra o lugar todo parecia tremer e o som dos trovões surgiam sacudindo tudo dentro daquele casarão que estava caindo aos pedaços, um som violento e que deixaria os mortais apreensivos se houvesse algum ali. Aparentemente não era o caso.

Uma risada surgiu vinda do final do corredor, despreocupada, medonha e maléfica. Ele parou um momento, já sabia onde os outros estavam e aguardou mais um pouco.

Outra risada apareceu e as vozes continuaram no que parecia ser uma conversa a dois, vozes humanas com um tom ligeiramente inferior, mas porquê?

Olhou para baixo e viu as pegadas bem definidas na podridão do lugar, mas não era duas e sim três.

Uma terceira vós apareceu, não estava falando, mas sim chorando, soluçava e murmurava coisas sem sentido. Em seguida as risadas diabólicas que debochavam recomeçavam; estavam brincando com alguém, um mortal. Dois deles e uma pessoa comum; agora teria de ter muito mais prudência do que o que estava planejando, não podia simplesmente entrar na sala onde estavam e acabar com os outros, tinha de tomar todas as precauções para que aquela pessoa que estava ali certamente mantida como refém não fosse ferida; sob nenhuma hipótese um mortal poderia perder a vida na ação.

Aproximou-se com cautela para não fazer barulho algum que pudesse ser interpretado pelos outros; ele se moveu sem produzir nenhum ruído, sua respiração estava agora numa freqüência abaixo da produzida pelas gargalhadas dos que estavam dentro da sala.

De repente um grito; mortal, agonizante quebrou o silêncio quando os risos pararam e em seguida as gargalhadas voltaram.

“Acho melhor você usar isso.”_ Disse a primeira voz e um som de ferro contra ferro foi ouvido.

Um grunhido baixo implorou por algo:

_ Não! Por favor. Não!

Riram mais.

Outro respondeu:

_ Está bem afiado.

_ Vira ele para a janela_ disse um dos dois.

Aquele que andava pelo corredor estava agora bem debaixo de uma das pequenas cascatas provocadas pela chuva, mas não se importava com aquilo, estava em estado de alerta e a porta do cômodo de onde vinham as vozes estavam ao alcance de sua mão; a porta estava encostada com menos de um dedo de fresta, não era possível espiar para dentro e saber a posição exata dos adversários.

O grito do mortal voltou acompanhado pelos risos em seguida.

_ Olha como sangra! _ Disse, e continuou _ Adoro isso.

_ Não! Por favor. _ Implorou o cativo.

A chuva agora era tão pesada que o barulho dela sobre as telhas velhas fazia um ruído que subjugava os demais.

Ele se aproximou da porta quase encostando nela e uma de suas mãos desceu até a altura da cintura; estava molhado, sujo; muitos dias sem falar com seus irmãos, mas finalmente estava prestes a concluir sua missão. Havia passado muitos dias rastreando até que por fim acabou descobrindo aquele lugar e a finalidade para a qual aquele casarão estava sendo usado.

Os cabelos desgrenhados e cobertos de teias de aranha, poeira, pedaços pequenos de reboco e água formavam uma espécie de lama que escorria pela face com gotas negras.

De dentro do cômodo um deles pareceu ouvir algo.

_ Espere!_ irrompeu.

O cativo chorava quase sem força para sustentar-se acordado; quanto tempo estaria sendo submetido às torturas insanas dos outros dois.

_ Pensei ter ouvido algo.

_ O quê?

_ Shhhh!

Um silêncio parcial teve início na medida do possível; entrecortado pelos soluços compulsivos do cativo dentro do cômodo e pelos sons da chuva e dos trovões.

Do lado de fora da sala, no corredor, o outro permanecia na espreita quase totalmente encostado na porta. Com uma das mãos tocou a madeira verde parcialmente apodrecida com uma sutileza que jamais algum mortal poderia reproduzir, como um caçador que busca se acomodar para efetuar o ataque definitivo; a outra mão segurou o cabo de uma arma presa a uma bainha junto da cintura cuja lâmina por si só seria o suficiente para colocar um fim naquele seqüestro insólito.

Eram dois torturadores dentro da sala e mais uma vítima, teria de ser cuidadoso, mas mortal, não podia errar sob pena de perder a pessoa que eles estavam mantendo cativa para fins profanos.

Torturadores; forças menores do caos, soltos para vagar sob a forma humana, achar pessoas específicas e sacrificá-las, mas não sem antes torturar de forma inimaginável seus cativos com todo tipo de requinte de crueldade. Muitos diriam tratar-se de uma casta de demônios.

As vozes dentro do cômodo retornaram e a tensão que estava se acumulando ali pareceu esvaziar-se um pouco.

_ Pensei ter ouvido alguma coisa. _ disse um deles.

_ Deve ter sido a chuva ou alguma telha solta_ respondeu o outro e em seguida fez um som estranho; inumando, como um ronco monstruoso._ Esse lugar está caindo aos pedaços, é excelente para devorar esses sacos de ossos.

_ É.

_ Fura ele e vamos embora.

_ Ainda não! A chuva ainda está muito pesada lá fora; deve haver rastreadores por aí.

Rastreadores; forças contrárias ao caos, Anjos.

_ Estão por aí; quase posso sentir._ e roncou novamente.

O cativo já não chorava, nem soluçava; não fazia mais nenhum movimento; havia perdido os sentidos por causa da intensa tortura a qual tinha sido submetido, mas ainda estava vivo; os três seres ali sabiam disso e essa era a deixa para aquele que estava no corredor fazer o que devia sem ser visto pelo mortal.

Uma forte lufada de ar entrou pelas janelas, bateu portas, janelas e telhas soltas nos cômodos espalhados pelo casarão antigo trazendo consigo gotículas de água pelo ar e o som de vozes que pareciam entoar algum canto gregoriano etéreo, se o mortal estivesse acordado não poderia escutar, nenhum mortal escutaria, mas os outros, todos, ouviram claramente; a chuva pesou sua mão sobre o lugar.

Era o sinal.

A porta se abriu tão rápido que as dobradiças não resistiram; soltaram-se das presilhas e ela voou pela sala acertando um dos dois torturadores. A porta se destruiu com o impacto, embora estivesse muito apodrecida e não foi o suficiente para causar dano algum; um vulto branco entrou na sala. Em princípio os torturadores pensaram se tratar de um homem, mas logo viram que não era um homem e sim outra coisa.

O cativo estava sentado numa cadeira velha completamente amarrado, mãos para trás e pés também; o sangue lhe escorria pela face e pelo tórax manchando todas as roupas, e, se misturava com a água que entrava pela janela e por uma grande abertura no teto. Provavelmente eles estivessem apenas no começo da tortura.

Um chicote luminoso, relâmpago, estalou no céu seguido do trovão.

Um deles tentou correr; o anjo retirou a lâmina da bainha e um “Uff...” foi ouvido por todos quando a mesma se incendiou; um fogo vivo, dançante, amarelo quase dourado que iluminou a sala por um segundo.

Ao ver aquilo, o que desejava correr roncou novamente numa atitude de desafio e o outro avançou. A espada cortou o ar deixando um rastro incandescente atrás de si como se ela mesma fosse um chicote dourado e quando acertou o inimigo uma pequena explosão iluminou novamente o lugar.

O outro torturador tapou a visão momentaneamente com as mãos na frente dos olhos para não ser ofuscado pelo brilho. A micro-explosão liberou vestígios, faíscas, que pareciam vaga-lumes que ficaram no ar úmido pairando por alguns segundos antes de caírem como uma chuva luminosa e se apagarem completamente; o som também ecoou, reverberou nas paredes repletas de infiltrações, mofo e rachaduras e se desfez no ar instantaneamente tal como os trovões estavam fazendo do lado de fora.

Pela janela da sala onde estavam era possível ver parte do elevado da Perimetral obscurecendo a rua e alguns galpões do porto.

Aquele que foi acertado pela espada caiu desacordado imediatamente; o componente surpresa havia surtido o efeito desejado, ele tinha eliminado um dos oponentes antes mesmo que eles soubessem o que estava acontecendo e com isso igualado as chances agora que eram apenas um contra um. Enquanto isso o outro rosnou violentamente armando-se com um artefato de ferro serrilhado, enferrujado e sujo de sangue; do sangue da vítima.

Eles se olharam por um longo segundo, não se moveram, nem respiraram. Seres como aqueles jamais se falavam, nem uma palavra sequer; eram completamente diferentes; extremamente opostos entre si, luz e sombras; e quando se encontravam a única coisa que ocorria era uma batalha como a que estava se desenrolando, mas ambos nasceram para fazer aquilo e nenhum arriscaria uma primeira investida; qualquer um deles tinha possibilidade de acabar com a peleja com um único movimento caso o outro vacilasse.

A chuva lá fora pareceu dobrar e o vento voltou a açoitar os dois, as roupas que outrora eram brancas sacudiram timidamente em contraste com as roupas negras, e tão sujas quanto as suas, do outro.

Ambos pareciam pessoas completamente normais, homens acima de quaisquer suspeitas, que poderiam estar resolvendo uma pendenga sem importância, mas não era esse o caso; eles eram soldados envolvidos na mais antiga das guerras; uma guerra que atravessava todas as eras sem previsão de acabar, não para eles. A única coisa que destoava da imagem era a espada cujas labaredas tinham se tornado quase translúcidas, mas ainda assim estavam lá.

Provavelmente em diversos ponto o Rio de Janeiro as pessoas estivessem tendo problemas sérios por conta da chuva mais pesada do ano, mas nenhuma delas poderia imaginar nem em seus sonhos mais delirantes que a chuva tivesse qualquer ligação com uma batalha como aquela. Como o bater das asas de uma borboleta que poderia criar uma tormenta em algum lugar, assim acontecia quando do encontro de duas forças contrárias como eles e a natureza respondia encobrindo o conflito. Era muito mais comum do que parecia.

Os olhos dos dois miravam-se como se houvesse uma força que os atraísse, a tensão parecia ter deixado o ar úmido tão espesso que a sensação era que a qualquer momento ele poderia ser tocado como a água que caia do céu. O tempo pareceu estar se esticando e o que foi na verdade um único segundo, se desdobrou, desdobrou e desdobrou como um espelho que reflete outro.

Havia vozes pairando fantasmagoricamente no ar, misturando-se ao som da chuva; pareciam brotar das paredes ou do próprio oxigênio que enchia a sala; eram lamúrias, sussurros, gritos grotescos, animalescos; vozes, roncos, urros, risos, gargalhadas e berros medonhos; porém, medonhos apenas para qualquer mortal que os ouvisse, embora assim como o canto gregoriano etéreo que ainda soava contrapondo-se a toda aquela algazarra bizarra, nenhum ouvido mortal podia ouvir, exceto em momentos muito específicos.

Por fim, o torturador sorriu de um modo tão demente e furioso como só mesmo um ser maldito podia fazer; ombros encurvados, a face desfigurada, os olhos injetados e vitrificados pelo ódio que lhe transparecia violentamente. A saliva escorreu pela boca no mesmo momento em que ele bateu seu instrumento de tortura contra a parede mais próxima, isso produziu um ruído metálico acompanhado pela gargalhada furiosa.

Já o outro permanecia impassível, com um semblante áspero e duro, um olhar sóbrio, ombros eretos e imponentes; faltavam-lhe as asas. A lâmina da espada ganhou vida novamente quando o fogo dançou e recuperou a cor amarelo-dourado e ele piscou como se estivesse acordando de um transe.

Tão rápido quanto seus corpos aquentaram, um avançou sobre o outro. Mais uma língua de luz fendeu as nuvens se transformando por milésimos de segundo num gigantesco garrancho elétrico nos céus e o trovão abafou todos os sons da cidade.

A única testemunha humana que poderia relatar como se deu o desfecho daquele encontro estava ferida e desacordada; e, quando este despertasse, se despertasse, não haveria mais vestígio algum do que tinha sucedido ali.

Ninguém jamais poderia imaginar que algo de tamanha magnitude tinha ocorrido bem no centro da cidade, porque a chuva tratou de encobrir tudo com seu manto.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 05/04/2013
Código do texto: T4224412
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