O Veneno de um Livro

Com tantas coisas para envenená-lo no mundo, com todas as prostitutas soltas por aí, com todas as doenças, luxúrias, exageros, sensacionalismo, ele envenenou-se por um livro.

Estava em casa quando recebeu pelo correio um livro de um remetente desconhecido que dizia em um bilhete:

"Sua vida já foi escrita".

***

O jovem Ferdinand não entendia bem e não acreditava em adivinhos ou nada que premeditasse algo. Gostava de ler e adorava ganhar livros, por isso resolveu abrir de vez o embrulho e ler. Sentou-se na varanda, preparou a caneca e a jarra de café, disposto a permanecer ali, lendo, como fazia com os outros livros, até a vista ficar cansada. Depois levantaria, colocaria o livro no criado-mudo ao lado da cama, tomaria um banho e esperaria o sono chegar, para que pudesse sonhar com as páginas. Realmente foi assim que sucedeu-se os minutos seguintes, só que ao deitar na cama, Ferdinand sentiu uma vontade tão grande de continuar a ler de onde parou, mesmo sem nem lembrar do bilhete, mas porque o livro realmente tinha-o prendido, chamado sua atenção, de modo que ele teve a impressão de que mal abriu o livro e o sol já estava se pondo.

O fato é que rodou e rodou na cama até finalmente pegar o livro e continuar lendo. Adormeceu lendo. Sonhou com Dorian, o personagem principal, lembrando das páginas que destacavam o quão belo e inocente ele era, de tudo que conseguia, mesmo sem querer, por causa de sua graça e infantilidade. Mas, na verdade, Dorian era perverso. O primeiro erro de Dorian veio sem querer - como costumam vim todos os erros - , porém o maior pecado de Dorian foi continuar no erro. Ele caiu num mundo de imundícies, de luxo, um mundo criado por ele, onde só ele poderia se dar bem. Ferdinand viu tudo isso em sonho como se estivesse vendo a história na realidade; viu as cenas em que Dorian falava com as moças e conseguia conquistá-las com a maior facilidade; o sonho terminou justamente com a última frase que lera no livro. Era uma frase de Dorian onde ele dizia:

"Sou tudo aquilo que você quer ser, mas tem medo de levar adiante".

O estranho foi que, ao dizer isso, o Dorian do sonho estava de costas e, quando virou, tinha o rosto de Ferdinand, com um sorriso malicioso no canto da boca. Ele acordou pulando de susto, achando que apenas tinha visto aquilo porque ficara impressionado com o bilhete e com o livro. O mais estranho ainda é que Ferdinand lia o livro, dormia, e sonhava com tudo o que tinha lido até onde parava de ler e sempre via seu rosto no rosto de Dorian em algum momento.

Não demorou muito para terminar de ler o livro. Leu outros depois e foi deixando a vida de Dorian para trás. Chegou, entretanto, um tempo em sua vida, em que os livros que lia não o satisfaziam mais e ele sentia muita saudade dos sonhos que tivera lendo sobre Dorian. Voltou a ler o livro e depois que terminava lia de novo. Leu tanto o livro que só era necessário ler a primeira linha e era capaz de falar todas as outras do restante do capítulo sem nem precisar ver e sem errar uma só vírgula. Viciou-se no livro como os ninfomaníacos são viciados em sexo.

Não satisfeito mais com ler e sonhar, resolveu viver o livro, tornando-se o próprio Dorian e, aos poucos, adquirindo suas qualidades e cometendo seus erros, às vezes sem perceber, como o próprio Dorian. O livro foi ganhando vida e confundindo-se com a realidade. A vida de Ferdinand começou a ficar idêntica a de Dorian; o que acontecia com Dorian começou a acontecer a Ferdinand.

Ferdinand experimentou todas as loucuras da vida. O engraçado era que, após cometer tais loucuras, lembrava do livro e via a semelhança entre os fatos, mas não se importava. O tempo foi passando e as loucuras de Ferdinand chegaram, como no livro, às páginas finais. Sentia-se louco, pois parecia que não era mais capaz de nada. Trancafiou-se no quarto durante uma semana, sem saber o que fazer. Embebedava-se, dormia, acordava, tornava a beber. Funcionou por um tempo até a própria bebida não fazer mais efeito.

Uma noite, pensou em suicídio já que não conseguia mais viver. Foi para a janela e ficou calculando a altura e como seu corpo ficaria disforme no chão. Livrou-se do medo, subiu na janela e quando estava prestes a se jogar, ouviu uma voz masculina dizendo:

"Tolo, tolo, não faça isso... Desce daí e vamos conversar".

Assustou-se e desceu da janela, ficando de costas para onde ouvira a voz. Quem poderia ser? A porta estava trancada! Tomou coragem e virou-se, deparando-se com a figura que imaginara de Dorian bem ali, parada na sua frente, com o mesmo sorriso debochado e postura.

"Mas não é possível... Estou realmente louco!“

"Não, meu caro, eu realmente vi que precisava de ajuda, por isso resolvi sair de meu sossego e ver o que posso fazer contigo".

"O que fazer comigo? O que podes fazer comigo? És fruto da minha cabeça, uma alucinação, não és capaz de nada!"

"Não, Ferdinand, sou capaz de muitas coisas. Veja sua vida: eu a moldei como quis. Eu permiti que vivesse conforme o teu desejo de viver; tirei tua timidez e deixei-o ser o 'Dorian' da vez.Fui o exemplo pra você, o empurrão que faltava. Dei forças e te ajudei a ser tudo o que você queria ser, mas tinha medo de levar adiante".

Lembrou-se da frase que lera no início do livro. Seria mesmo isso o que estava acontecendo? Seria possível uma personagem ganhar vida, sair de um livro e conversar com seu leitor, afirmando que ele o dera a vida e não o contrário? Ferdinand achava que estava louco e, como já tinha tomado a decisão do suicídio, pegou uma arma que guardava no criado-mudo e mirou na cabeça.

"Hum, hum... Nada disso, nada de sangue nesse lindo carpete egípcio, Ferdinand. Tens coragem de atirar contra tua própria cabeça, a cabeça que eu moldei, e acabar com o trabalho maravilhoso que fiz?"

"Não sou uma marionete tua, Dorian."

"Ah, então você resolveu decidi isso agora, depois de tudo que te dei? Mal agradecido..."

"Vou me matar."

"Não tens coragem."

"Deste-me coragem."

"Não, dei-te coragem para fazer o que tinha vontade, em nenhum momento eu disse para atirar em teus miolos e morrer como covarde, seu covarde."

"Então vou te matar."

"Vá em frente. Tente."

Ferdinand atirou e a bala passou pelo corpo de Dorian como se estivesse passando pela neblina.

"Bom, és um homem de coragem, mas achastes mesmo que poderia matar uma personagem? A mamãe não ensinou que personagens são imortais, meu caro? Eu sou uma personagem, mais bonito e inteligente, mas sou. E, só pra lembrar, também sou imortal. Afinal - continuou enquanto andava pelo aposento, passando os dedos brancos e finos nos objetos e fazendo cara de nojo ao ver a poeira - , as personagens como eu são as que mereciam realmente ficar na cabeça das pessoas. Não concorda, Ferdinand?"

"Você é um vício, leva a loucura e mata!"

"Mas você não está morto"

"Mas pensei em me matar"

"Mas não se matou"

Seria inútil discutir com Dorian. Ele ganharia a discussão sem nenhum esforço.

"Está bem, meu caro, sem mais delongas, não é mesmo? Sinta-se honrado em poder me ver e passar todo esse tempo ao meu lado. Entretanto, saiba que não és o primeiro a me ver, então por favor, não sinta-se tão importante. Apareço para aqueles que julgo, depois de muito pensar, que poderiam fazer parte do meu livro, mas sempre acabo me decepcionando. Já encontrei pessoas que pensei que seriam perfeitas para esse livro, mas eles acabavam caindo em desgraça, estavam drogados, perdidos, então preferi deixar eles tomarem o destino da vida deles e continuar indo, de mão em mão, para jovens que precisam de um exemplo a seguir."

"Então você nos entorpece, nos acostuma com uma coisa, deixa-nos na abstinência para ver se resistimos só pro seu prazer, aí ao invés de tentar nos tirar desse quadro, você nos deixa morrer?"

"É"

"É?!"

"Ora, simples assim, Ferdinand! Não se perde tempo com o que não deve. O tempo é algo precioso."

"Você é um monstro"

"O mais bonito, diga-se de passagem"

"Mas o que queres mesmo?"

"Você, 'burito'"

"Ah, agora vai falar espanhol?"

"Estou aprendendo com o mexicano que deixei entrar no livro. Ele me ajudou bastante a nortear sua história."

"Han?"

"Ok,, quero-te no livro. Você vem?"

"Como?"

"Entra no livro, terás um capítulo à parte como meu amigo, poderás até decidir o título do seu capítulo, viverás tuas loucuras novamente, partilharás novas loucuras comigo e ajudará na próxima história. Esse é um livro sem fim. Sempre aumenta um capítulo quando entra alguém, aí é um trabalhão organizar tudo de novo até chegar nas próximas mãos. Começou quando eu escrevi um livro com minhas vontades, quis ser imortal e acabei vindo parar aqui. Ainda bem. Fiquei com medo de só virar imortal depois de velho e feio."

"Parece uma proposta tentadora, Dorian".

"É uma proposta tentadora, Ferdinand, e só é feita uma vez. Se não quiser, pode viver na loucura e se matar depois. Será menos um louco que fica dizendo que viu o personagem sair do livro. Aff."

"E-eu quero fazer parte!"

"Então chegue mais perto, meu caro, e vamos para casa."

"Pensa em quê para a outra história?"

"Em uma garota, sabe, esse livro está carente de moças para se desvirtuar. As que estão aqui perdem a graça depois de muito usadas. Acho que aceitei mulheres sem valor no começo e agora quero uma que valha a pena está aqui, uma que até me faça querer casar ou que enlouqueça os homens de modo a decepcioná-los quando eu aparecer no lugar dela."

"Ótima ideia, Dorian!"

"Sei, sou um gênio."

E continuaram com a conversa até entrarem no mundo de Dorian. Levaram um bom tempo trabalhando na história da dama tentadora até finalmente concluí-la.

***

Estava sozinha no apartamento quando bateram na porta. Diana levantou e a abriu. Não havia ninguém lá fora, só um embrulho no chão. Pegou, sentou-se na cama e viu o bilhete que dizia:

"Sua vida já foi escrita"

Sorriu, achando aquilo muito tolo. Abriu o livro e começou a ler.

Inspirado no livro "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde.

Rayanne Correia
Enviado por Rayanne Correia em 22/04/2013
Reeditado em 22/05/2016
Código do texto: T4254257
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