O Grande Tenor

Dizem que ao nascer Francisco chorou em si bemol, e ao invés de ouvir as corriqueiras piadas sobre a genitália de recém nascido ou aqueles infames elogios a masculinidade, ouviu dos médicos e enfermeiras elogios sobre sua voz e capacidades pulmonares. Claro que bebes não choram em si bemol, nem mesmo Caruso ou Pavarotti fizeram isto ao nascer, óbvio que nem mesmo os maiores tenores da história da humanidade tiveram uma voz admirável quando crianças, eram finas e irritantes como a voz de qualquer criança, e Francisco sempre soube disso, mas, nunca se importou com a verdade. Imaginar a cena com os médicos e enfermeiras aplaudindo sua primeira manifestação vocal, era algo que o fazia feliz, então, quando contava a alguém por que gostava tanto de cantar, ele sempre mencionava este fato.

Francisco foi uma criança feliz, que acordava cada dia de sua vida a cantarolar uma canção diferente. Cresceu ouvindo seus parentes e amigos dizendo que ele deveria cantar mais, os elogios de tantos familiares alimentaram seus sonhos de sucesso musical até que eles se transformassem em objetivos de vida. Francisco treinou sua voz, adquiriu um gosto refinado pelos clássicos do passado, e embora as pessoas se assustassem inicialmente quando dizia que pretendia viver de cantar ópera, em minutos as convencia de que seria capaz, bastando apenas cantar um pequeno trecho de uma ária qualquer.

Tudo levaria a crer que ele teria êxito em seu sonho de cantar profissionalmente, mas, como ópera não é um estilo musical que caiba no gosto popular suficientemente para ser rentável, e como seus pais não desejavam um vagabundo frustrado em casa pelo resto da vida, forçaram-no a seguir uma carreira bastante diferente da que ele almejava. Foi um dia triste aquele em que o mesmo pai e a mesma mãe que antes o estimulavam a cantar para vê-lo sorrir por alguns minutos, agora o forçavam a estudar medicina, uma profissão mais séria, cujos frutos poderiam lhe fazer sorrir pelo restante da vida, mas, que ele não queria. Não existe nada de realmente ruim em se tornar médico e obter a habilidade de curar os corpos das pessoas que padecem com sabedoria, a não ser é claro, quando o seu maior sonho é completamente diferente, Francisco desejava curar a alma das pessoas com sua música, com sua voz, com algo bom que sentia dentro de si e que não havia outra forma de compartilhar com o mundo, senão pelo ato de cantar.

Mesmo contrariado, ele estudou muito, lutou e venceu para se tornar um grande orgulho a toda família. Em sua formatura, fazia planos de seguir uma carreira paralela, mas, em pouco tempo percebeu o quão difícil é a vida de um médico, e se viu obrigado a desistir.

Em poucos meses de clinica, perdeu o interesse pelos pacientes vivos, que tão ocupados com as próprias dores não se interessavam em ouvi-lo cantar e, especializou-se em anatomia patológica, onde finalmente podia cantar a plenos pulmões durante as sessões de necrópsia. Dedicado e competente, aparentemente muito satisfeito com seu trabalho, em alguns anos tornou-se diretor geral do IML local, onde suas cantorias para ouvidos mortos se transformariam em um estranho hábito.

Todos os fins de semana, Francisco guardava sua energia, falava o mínimo possível para preservar sua voz. Ansioso esperava até o ultimo funcionário sair, pegava sua velha radiola de pilhas, que mesmo obscurecida pelo tempo, ainda era a única capaz de reproduzir aqueles discos, raridades em vinil que ele colecionou por toda a vida.

Caminhava pelos gélidos corredores fazendo escalas vocais para aquecer a garganta, seu destino era um grande salão no subterrâneo, que apesar de algumas geladeiras nas paredes e mesas espalhadas onde os profissionais trabalhavam com os cadáveres, era a que tinha a melhor acústica. Escolhia um disco, sentava alguns defuntos em uma das mesas e cantava para eles a todo o volume. Os mortos sempre foram sua maior e mais fiel plateia.

Aquela era uma noite especial, deveria ser um dia feliz seu aniversário de 50 anos, mas, não foi. Ninguém lembrou de felicitá-lo, nem mesmo seu sobrinho que já trabalhava com ele a tantos anos entre as mesmas paredes. Se o dia havia sido vazio, a noite precisava ser repleta. Não foi difícil escolher o disco para aquela noite, um disco especial, definitivamente seu preferido para dias tristes, com o instrumental completo da ópera de Turandot. Cantar opera nunca foi apenas decorar algumas palavras em italiano e possuir uma voz possante, cada opera possui uma história para contar, um motivo, e uma re-significação para o próprio cantor. Francisco conhecia cada detalhe da história onde a princesa Turandot precisava adivinhar o nome do príncipe desconhecido, mas, para ele tudo possuía um significado diferente, sobretudo na ária que pretendia cantar para abrir a noite.

O disco instrumental tocava sem a bela voz de seu dono, enquanto Francisco enfileirava as mesas de necropsia como uma arquibancada e abria uma a uma as geladeiras para carregar seus convidados até seus respectivos lugares. Alguns, ainda em rigor mortis, davam muito trabalho para se colocar sentados, então ficaram em pé, escorados pelas paredes amareladas, outros, já relaxados pelo tempo de estadia eram acomodados sentados, escorando uns aos outros. Levou quase uma hora até que todos os assentos do mórbido teatro estivessem ocupados, e um a um, Francisco acomodou, abriu os olhos e agradeceu pela presença.

Se afastou e foi ao centro do salão, o disco quase chegava na ária que pretendia cantar, respirou fundo ignorando o cheiro da morte que o cercava, e felicitou-se porque a tempos não haviam tantas cadeiras ocupadas em seu show semanal.

Já fazia muito tempo que Francisco havia perdido a capacidade de perceber o quão sinistra era sua mania de cantar ópera para uma plateia lotada de gente morta. Corpos nus de carne gelada, muitos com feridas mortais expostas, faces impassíveis, as vezes esfoladas, com olhos arregalados precisamente apontados para ele em um ponto no centro do salão. A faixa da famosa ária do ultimo ato começa a tocar, os olhos de Francisco se enchem com lágrimas da emoção que cantar para uma plateia tão grande lhe fazia sentir.

---- “Nessum Dorma... Nessum Dorma...” - Fracisco cantava com emoção as frases iniciais de sua grande apresentação, na história original da canção, é o momento em que o príncipe de nome desconhecido desdenha das ordens da princesa. “Ninguém durma”, havia um humor sinistro em cantar esta frase para uma plateia que dormia o sono eterno. Na ópera original, a princesa Turandot ordenou que ninguém dormisse em toda a China para que todos ajudassem a descobrir o nome do príncipe, se ela não adivinhasse até o amanhecer, seria obrigada a casar com ele. - “Il nome mio nessun saprà!” - O príncipe vangloriava-se de que ninguém seria capaz de descobrir seu nome enquanto Francisco, chorava pelo mesmo motivo. Pensava que nenhuma pessoa viva algum dia ouviria falar de seu nome, ou saberia do seu amor pela música. Com a forte emoção em seu peito, parafraseava o príncipe e ordenava que a noite se retirasse, que as estrelas se desvanecessem por que na alvorada venceria, e sim, ele sonhava com isto a cada dia, a cada amanhecer - “All'alba vincerò! Vincerò! Vincerò!”.

A faixa terminou e Francisco cabisbaixo, esgotado por toda a emoção que música lhe fazia viver, trocou o disco em silêncio quando subitamente foi interrompido pela frase que mais desejou ouvir por toda a sua vida:

---- BRAVO! BRAVÍSSIMO!!!

---- Mas quem… - Francisco não teve tempo de terminar a frase enquanto virava-se para trás. Um senhor, de peito costurado havia levantado para aplaudir, outros estavam levantando, os que tinham braços e mão batiam palmas freneticamente.

Seria de se esperar que uma pessoa ao se deparar com um tão grande número de mortos vivos simplesmente saísse correndo durante três ou quatro dias sem nunca olhar para trás, mas, passado o choque inicial, Francisco percebeu que aquele era o momento mais feliz de sua vida, seu publico mais fiel o aplaudia e ele não sairia de lá por nada neste mundo.

---- Você estão? Estão... - Francisco queria perguntar se estavam vivos, mas, já sabia da resposta.

---- Por favor cante mais – pede um homem que havia sido baleado na testa.

---- Sim! Cante outra! - pede uma mulher, de aparentes 40 anos e que havia cometido suicídio no dia anterior – A tempos nada me fazia sentir tão feliz.

---- Alguma sugestão? - Perguntou Francisco ainda sem acreditar nos sorrisos que presenciava – alguém quer algo especial?

---- O Show é seu! - Respondeu o senhor de peito costurado – O prazer é nosso!

Com pressa escolheu outro disco, e logo estava cantando outra grande obra do passado.

---- Figaro Figaro!! - Talvez porque nunca antes teve uma plateia que se movia e se emocionava, nunca antes sua voz saiu tão triunfal. Francisco se assustava com a perfeição acústica que as paredes lhe retornavam. Cantou durante horas e foi aplaudido com furor até que exausto, ao fim da noite, vendo lágrimas nos rostos emocionados que o aplaudiam, falou em alta voz – Gente, obrigado por isto, esperei por este momento a minha vida inteira... Agora eu já posso morrer em paz.

---- Senhor Francisco – disse um senhor de terno escuro que surgiu ao seu lado como um fantasma – Sinto em lhe informar, que isto já aconteceu.

---- Como assim? Estou morto? É isso? Quem é você?

---- Sim, você está morto. Seu coração não aguentou o esforço de formar esta plateia. Sou seu agente do destino, mas, entenda como um empresário. Quero que se apresente em muitos teatros no além vida.

---- Existem muitos teatros?

---- Incontáveis. E muitas obras que os grandes gênios fizeram após a própria morte para você aprender.

---- E alguém virá me ouvir?

---- Senhor Francisco, está escrito em seu destino que se tornará o maior tenor do mundo. Se sua escolha tivesse sido diferente em sua juventude, teria o sido em vida, mas, destino é destino, e ninguém pode tirar isto de você, nem depois de morto.

---- E quando vamos?

---- Quando você quiser... Está pronto?

---- Mas e eles?

---- Alguém os devolverá para as geladeiras amanhã.

---- Obrigado senhor Francisco por este espetáculo – agradeceu um jovem esfaqueado – Nunca nem mesmo imaginei que pudesse haver tanto sentimento em uma ópera, nem gostava de ópera antes de conhecer um verdadeiro tenor.

---- Obrigado – disse outro.

---- Parabéns – falou mais um.

Um a um os mortos da plateia o cumprimentaram, não tinham flores, mas tinham a alegria estampada nos rostos pálidos. Francisco se abraçou em seu agente de destino, e simplesmente se foi, para finalmente viver seu sonho em outra vida.

Na manhã seguinte, o corpo de Francisco foi encontrado ao centro do grande salão, cercado de sua sinistra plateia ainda de olhos escancarados e bocas sorridentes. Entre os funcionários e a polícia local quase não haviam mistérios sobre o que havia ocorrido durante a noite, as histórias sobre o homem que enlouqueceu e convidou todos os mortos para seu aniversário são até hoje sussurradas aos novos funcionários pelos corredores. Uma história que não será esquecida, junto com a cena de rara morbidez que todos sabiam ser impossível de reconstituir por causa de um curioso detalhe. É fato conhecido que é fácil sentar cadáveres em mesas, abrir seus olhos talvez um pouco mais difícil se estiverem na posição vertical. Mas a pergunta que todos faziam, que permaneceu e ainda permanece sem resposta, era como ele conseguiu fabricar todos aqueles sorrisos?

=NuNuNO==

(Que após morrer provavelmente terá mais tempo de escrever, e espera que até lá, Chico Xavier já tenha reencarnado)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 18/05/2013
Código do texto: T4297285
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