Cinzas De Furacão Morto

Acendi o último cigarro. As luzes da estação estavam ficando fracas, o silêncio ecoava frio por túneis que pareciam portais para o inferno. Traguei forte, sentindo a queimação áspera e viciante percorrer todo o meu corpo, enchendo o pulmão de poeira. Uma sensação anestésica. Soltei a fumaça azulada que se contorceu pelo ar como se estivesse viva. Olhei para os lados, em meio a névoa quente que me envolvia... Estava só. Só eu e o silêncio da madrugada eterna. Sabia que nem Deus, em sua complexa onipresença, estava á me fazer companhia. Meus olhos cerrados e vermelhos procuravam um horizonte escondido na infinitude daquelas cinzentas paredes. Escutei, meio incerto, nascer ao longe o som que eu esperava. Não sabia se aquilo tudo era real ou apenas um devaneio fruto das infinitas noites incompletas, até uma buzina estridente, trazida por uma correnteza de um vento seco e frio, cortar aquele vácuo como uma queda que interrompe um sonho. O som se aproximava cada vez mais, parecendo vir de dentro para fora, senti tudo em volta tremer, as lamparinas balançavam, e de repente vi -como se fosse um grande monstro rastejante - o metrô surgir de dentro do túnel com seus grandes faróis que pareciam olhos de um dragão faminto.

Levantei lentamente e me aproximei dos trilhos em passos calmos, dando um último trago no cigarro, sentindo a nicotina desbravar todo o meu corpo, e depois jogando-o fora como se fosse algo inútil. O metrô começou a diminuir a velocidade gradativamente e as janelas ainda passavam rápidas por mim mostrando meu reflexo em saltitantes fotografias, mas suficientemente lentas para eu ver que os vagões estavam tão vazios e sujos quanto a minha alma.

Finalmente parou.

Uma porta se abriu como um portal convidativo á minha frente. Entrei sem pressa. As luzes fortes incomodaram levemente meus olhos, ofuscando minha visão escorregadia, desconfiada. Olhei em volta - atento -, escolhendo um lugar para sentar. Era uma madrugada difícil. Caminhei calmo até o fim do vagão e me acomodei numa cadeira ao lado da janela. Limpei o vidro embaçado com a mão e vi o reflexo das luzes atrás de mim embaçando a imagem do meu rosto. Um sinal soou agudo, algo como um ''plim'' e todas as portas se fecharam secas e rápidas, como um soco. Um ranger de motores começou a se formar, o metrô deu uma leve tremida e começou a mover-se lentamente para alguma direção. Logo alcançou uma velocidade que, inexplicavelmente, me deixou mais confortável e sonolento. Mas eu não poderia dormir ali, sabia disso.

Certo de que estava só, estiquei as pernas e encostei minha cabeça no vidro da janela permitindo-me estabilizar minhas loucuras. O sono começou a envolver-me como uma diabólica tentação que abraça um inocente em forma de nuvem. Minhas pálpebras pareciam pesar toneladas, e não resisti àquela sutil e maldita armadilha da carne. Meus olhos se fecharam e minha mente parecia mais exausta do que meu corpo. Quando comecei a largar a matéria que me prende,entrando num mundo de trevas infinito, um barulho me fez abrir os olhos atentamente como se eu tivesse tomado um choque. Nem percebera que o metrô já avançara três estações, e naquele momento estava parado, com as portas abertas. Nada acontecia. O silêncio se tornava tão amedrontante como uma goteira de sangue. Continuei na mesma posição, largado como alguém que dorme numa praça, e quando o sinal soou e as portas estavam prestes á fechar, ela entrou correndo.

Olhando diretamente nos meus olhos, como uma medusa a petrificar um amante; com a malícia de uma cobra que avista feliz sua presa. Ela me olhou com seus densos e hipnotizantes olhos verde-cinza, que pareciam ser abrigo de um oceano poluído. Eu permaneci calado, imóvel. Como o macho de uma viúva negra: estava nas mãos dela. Seus cabelos tinham cor de sol, sua boca entreaberta era como uma rosa se desdobrando em sangue, afogada no escarlate do batom. A pele branca como um pedaço de nuvem, um tanto ruborizada nas maçãs do rosto retangular. Vestia um pedaço de seda na altura dos seios e uma saia curta brilhante.

Ela veio na minha direção, lentamente mas em passos firmes, decididos... Sensuais. Sem tirar os olhos dos meus. Parecia flutuar. Suas pernas eram altas e grossas e de um formato que pareciam ter sido feitas á mão. Me ajeitei na cadeira meio hesitante, mas sem desviar o olhar. Ela continuava a se aproximar devagar. Tentava procurar provas de que estava dentro de um sonho, mas ja era tarde: ela aproximou seu rosto do meu, quase me devorando com seus lindos e assustadores olhos, - sem dizer uma palavra - sua boca se abriu e ela me beijou nos lábios.

Nossas línguas se entrelaçaram oleosas como uma orgia de cobras. Sua saliva tinha gosto de pecado, fogo e canela. Senti algo como um gelo quente percorrer lentamente toda minha espinha quase me fazendo tremer. Tudo se tornou oco, inútil. O tempo pareceu parar e apreciar com inveja aquele pecado. Ela descolou sua boca da minha com os olhos ainda ingenuamente fechados. Debruçou cuidadosamente á minha frente,aproximando seus seios do meu rosto e com o indicador escreveu no vidro embaçado da janela ''cinzas de furacão morto''. Eu li pausadamente, analisando cada sílaba,acompanhando o movimento leve da sua mão '' cin-zas-de-fu-ra-cão-mor-to...'' Naquele momento entendi tudo. '' É a cor dos teus olhos: cinzas de furacão morto'', eu á disse. Então escutei uma voz imaculada e sensual, que parecia a mistura da voz de uma freira com a voz de uma prostituta, arrepiar toda minha carne: ''e também é a cor do meu coração''. '' Sim, eu sei... pois só vejo essa cor nas tempestades que enfrento nos meus pesadelos'', eu disse, não deixando libertarem-se as minhas lágrimas insistentes, olhando para o vidro que mostrava o meu reflexo entre as letras, e depois para a infinitude resplandecente dos seus olhos, analisando pasmo sua boca tentadora. Subitamente vi sair de suas costas, como de um pégaso que se liberta; como de um anjo orgulhoso de ter caído, enormes asas cor de gelo. Um furacão, gritando sua voz grave, arrancou o metrô dos trilhos fazendo-o derrapar até perder as forças, como um brinquedo que acaba de quebrar. Mas nossos olhares não se afastaram nem por um segundo. As luzes saltitavam e faiscavam entre os fios elétricos pendurados. Tudo sacudia á minha volta. O chão parecia estar prestes a se abrir e me engolir, mas eu não me movia, não demonstrava nenhum temor... Nem ela. ''Já entendi... É uma tempestade...'', eu disse com o gosto dela ainda em mim. Ela sorriu e disse,'' não, são cinzas de furacão morto, e agora, não tens mais desculpas: sabes o nome''. E perguntei-a: '' e por que me procuras no maldito mistério da noite?''. Ela disse, me devorando com os dois brilhantes em seu rosto: '' existem mistérios na tua alma que me pertencem''. Eu disse ''então por que não á leva, a minha alma?''. ''Porque não me desejas de verdade'', ela disse, pela primeira vez, baixando o olhar, deixando uma delicada lágrima mapear seu rosto.E eu disse, levantando seu rosto pelo queixo e fitando-a diretamente, sorrindo pelos olhos: '' Se sabes disso, sei que és uma tempestade...''. '' Eu lhe prometo que não sou!'', ela disse, querendo me beijar. Então respondi: ''Como posso confiar em alguém que vaga pelas estações nas madrugadas do inverno?''. E então ela se deitou no meu colo e disse: ''Nada dizem as estações sobre mim. Mas sim, o amor que sinto por ti, e que me fez te procurar em várias madrugadas como esta em que te encontrei''.

Álvaro Augusto
Enviado por Álvaro Augusto em 19/05/2013
Reeditado em 04/06/2016
Código do texto: T4298328
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