A INCRÍVEL MULHER QUE FLUTUOU

Um carro novo e caro. Um olhar de desprezo. Uma viagem ao exterior. A comida melhor que as outras, que todas as outras. Ingredientes importados. Um olhar de desdém. Cílios implantados, sobrancelhas postiças, pretas, pintadas na carne, infinitamente melhor que as outras. Definitivamente. Lipoaspiração. Quem poderia? Depilação a laser. Coisa pra durar pra sempre. Danem-se! A melhor comida, muito, mas muito melhor que as outras. Ingredientes importados e de primeira qualidade. Tentem! Os olhos com aquele ar de desdém.

Até que um dia ela já estava tão cheia de si que flutuou. Começou devagarzinho, numa manhã de névoa, e foi flutuando mansamente. E nem havia ninguém por perto para testemunhar sua proeza. Levitou, primeiro aos poucos, depois mais intensamente. Um cão latiu, lá longe. O sol ainda tinha preguiça. E ela flutuou um pouco mais sobre as cabeças mesquinhas e imprevisíveis de suas vizinhas, que dormiam na sua mesmice e na sua pobreza, mesma de sempre. Pairou, e nesse instante as nuvens já não faziam favor nenhum em beijar seus pés. Sentiu-se a verdadeira dona de tudo. Olhou para os quintais, onde suas vizinhas abanavam lenços brancos de algodão.

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(Publicado em "A Pizza Literária - oitava fornada" - Expressão & Arte Editora - SP 2004