Nati

David abriu os olhos.

Sentiu um conforto estranho e tentou se mexer para entender o que estava acontecendo, falhou.

Suas pernas dobradas e a coluna levemente inclinada num ambiente escuro e apertado.

Alguns segundos ofegantes de desespero fizeram David pensar que tinha claustrofobia, mas o fato é que qualquer um sentiria um gigantesco frio na espinha ao acordar trancafiado num local totalmente desconhecido.

Logo percebeu também que possuía algum tipo de perca de memória grave. Será Alzheimer? Afinal, quem era David? Nem o próprio rapaz sabia. Lembrava-se de pouco, insuficientemente pouco.

Forçou a testa para puxar à memória qualquer coisa, realmente qualquer coisa. Lembrou.

Havia outro homem, este era fardado, com uma expressão de ódio e sarcasmo. Não era um amigo, obviamente, mas o lugar em que estava antes parecia ser bem maior que este. Talvez tudo tivesse desabado, quem sabe? Lembrar do que vinha antes e depois era pedir demais.

Tentou mais uma vez sair daquela posição estranha: suas mãos amarradas numa corda, as pernas pesadas, nem sabia se estava mesmo de olhos abertos.

Um barulho estranho de batidas o perturbava. Quanto mais tentava descobrir o que acontecia, mais sem sentido era sua resposta.

Eram pequenos intervalos de sons de um tambor abafado... Ou pelo menos parecia. David estava começando a ficar incomodado.

Não estava frio. Pra falar a verdade, ele sentia um calor excessivo, mas ao mesmo tempo estranhamente gostoso, de forma que sempre que o desconforto parecia despertar, uma onda de conforto o abraçava. E dessa vez abraçou tão forte que sentiu a vontade de se espreguiçar.

Foi quando sentiu sua perna se movendo e seu pé tocando uma das paredes do local.

Levou um susto. Talvez o maior susto da vida dele, ou melhor, o único susto que lembrava ter tomado. Ele não entendia como sua perna havia se mexido agora, estava tão fraco. Sem falar que a parede era de uma consistência tão estranha; era flácida, um tanto quanto gelatinosa e ele conseguia empurrar até uma certa distância.

Incrível. Primeiro pensou estou drogado; talvez fosse vítima de algum sequestro, de alguma pegadinha, talvez até mesmo tenha sido aquele homem quem o havia colocado lá. Ou não, talvez um acidente? Era tão confuso.

Ele parou um pouco. Decidiu tentar simplesmente pensar. Canalizou todas suas forças para conseguir ideias sobre aquela estranha experiência. Fechou os olhos com força.

David pensou por muito tempo, talvez até por horas, e quando abriu os olhos estava tudo ainda mais escuro.

Uma sensação de desespero voltou a assolá-lo. Ele não tinha ideia alguma do porquê de estar ali. O que ele havia feito para merecer aquilo?!

E nessa euforia de sentimentos David percebeu algo realmente muito mais estranho: seus dedos pareciam enrugados. Estaria ele debaixo d'água?

Por Deus! David não estava respirando! Pensou então que iria morrer afogado caso tentasse respirar.

Mas será que precisava respirar?

Com medo até de pensar, o rapaz estava agora imóvel. Conseguia sentir suas mãos ainda envoltas da corda, no entanto a mesma parecia mais solta. Talvez tivesse soltado a corda da parede.

De repente uma voz grossa soou por todo o ambiente. Uma voz de trovão, medonha e incerta.

"Nati..." Dizia a voz "Nati..."

Silêncio.

Um silêncio mórbido e ainda mais assustador dominava o local. Paralisado e com mais medo do que antes, David se esforçou uma última vez para pensar.

Em suas memórias meramente palpáveis em seu próprio cérebro houve um grande barulho. Um estrondo gigantesco e um impacto com força no peito de David.

Era isso então? O homem raivoso de suas memórias estava com... Uma arma?

Sim. Uma arma. Uma velha e enferrujada arma alemã. Ele lembrou de sua visão se escurecendo, lembrou da farda, lembrou do Nazismo, lembrou de seu Judaísmo, lembrou de sua morte.

David pensou em chorar, mas como poderia? Nem ao menos conseguia respirar.

A voz assustadora então voltou, dessa vez se pronunciando de forma indecifrável e seguida por turbulências e contrações das paredes que o envolviam.

Ouviu-se um choro ao fundo. David nunca havia se sentido tão triste e amedrontado. Quem chorava? Quem falava? O que é Nati?

Já havia morrido uma vez e agora estava determinado a descobrir o que estava acontecendo. Haviam tantas perguntas, tantas possibilidades e tanto tempo! Ele poderia descobrir! Poderia achar uma maneira de... Sair, quem sabe?

Uma grande picada acertou seu pé, seguida por um feixe de luz. Uma dor imensa tomou conta de David. O calor ficou sufocante, as paredes ficaram intimidadoras, a corda parecia se enrolar por todo seu pescoço. Tentou respirar, mas já não conseguia. Uma outra picada e agora seu pé estava destroçado.

'Por que não param?!" Queria gritar David. "Alguém me ajude aqui!"

Abriu a boca e os líquidos todos entraram por seu corpo.

Estava em desespero. Chegou tão perto e agora suas chances lhe seriam tiradas? Não é justo!

A terceira picada arrancou sua perna. Era isso. O fim. De novo.

Mas ao menos David não sentiu dor. Mal sabia ele que era apenas uma ilusão.

Afinal de contas, David não nasceu para sentir dor. Era um Bebê Natimorto.