O Mercador de histórias

Existe lá fora um mercador especial, um mercador de histórias. Cada pessoa lhe dirá algo diferente sobre isto. Ele pode reescrever sua história, ele pode lhe fazer viver uma história que você deseje ou pode simplesmente apagar do universo algum trecho que lhe incomode. Para negociar com ele, é necessário ter uma lenda que o interesse e um objeto que a comprove. Um dia um homem procurou este mercador para fazer um pedido, que julgava muito importante.

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---- Acho que sim... Posso lhe arrumar isto. O que me dá em troca? - Diz o mercador.

---- Tenho este pedaço liso de osso... Meu bem mais valioso... - Informa seu cliente.

---- Um pedaço gasto de osso? Sei. E o que acha farei com ele?

---- Não é um simples pedaço de osso... Achei que reconheceria suas virtudes... Conforme as velhas regras ele tem uma história, e além disso, tem um poder...

---- Me conte a história, talvez me interesse.

---- Milênios atrás, um deus já extinto amaldiçoou um rapaz. Ele deveria como em todos os equinócios, sacrificar uma ovelha em tributo ao deus, mas, como era muito pobre e aquela era a única ovelha que tinha, preferiu oferecê-la para sua família...

---- Então o deus ficou furioso...

---- O deus embora exigente, era piedoso, teria aceitado uma oração suplicando por perdão, mas conta-se que o homem quando lhe perguntaram sobre o sacrifício, zombou e riu dizendo que era livre da influencia dos deuses...

---- Agora sim o deus ficou furioso...

---- Não... O deus era muito paciente... Na esperança que ao receber fartura o homem faria o devido sacrifício em gratidão, enviou do alto da montanha dez ovelhas para pastar nos campos do homem, que as prendeu. Perguntaram para o homem se agora com tantas ovelhas ele iria finalmente fazer a oferenda, mas, desdenhando do deus que o ajudara, o homem disse que consumiria a todas como a última, e que os deuses não esperassem mais nada dele. O homem estava tão feliz que começou a dançar... E foi nesse momento que o deus ficou furioso.

---- E o que ele fez?

---- Amaldiçoou-o com eterna vida, e eterna dança!

---- Não me parece muito ruim...

---- Não? Ele não podia mais morrer, e não conseguia mais parar de dançar. Ele não dormia, não comia, e não tinha um segundo de trégua. Em alguns anos sua carne começou a desgrudar dos ossos com o movimento até que restou apenas um esqueleto dançando sobre a carniça. Com os séculos, os ossos se desgastaram com a fricção e tudo o restou foram algumas pequenas bolotas como esta que lhe trago. Se deixá-las soltas, ainda saltam sem motivo algum continuando a dança que se iniciou milênios atrás. Dizem que enquanto o ultimo osso não se converter em pó, este pobre homem não poderá morrer.

---- Então o homem ainda sofre com a dança? Ainda tem consciência do que está acontecendo?

---- Assim reza a lenda!

---- Você disse que o osso tinha também um poder. Que poder seria esse?

---- Vendo o homem dançar não era difícil querer zombar dele. Se alguém que estivesse dançando tocasse no homem, começava também a dançar e se não largasse de seu corpo, compartilharia do mesmo destino.

---- Então você quer me oferecer um osso maldito!?

---- Não... Claro que não! Repare que não estou dançando.

---- Realmente, isso é mesmo um fato notável.

---- Se simplesmente tocar o osso, e não der o primeiro passo de dança por vontade própria, você simplesmente não se cansará mais, não dormirá mais e não poderá morrer.

---- Eu não danço.

---- Este é meu ponto! Nunca senti necessidade de dançar, mas, se um dia acontecer acho que basta larga-lo... A lenda não conta de ninguém que continuou dançando até o fim além do homem. Fala apenas de pessoas que após algum tempo desmaiaram de exaustão após largá-lo.

---- Acho que fecharemos negócio. Você sabe que não durmo, não me canso ou morro, mas, creio saber quem gostaria de ter este pequeno pedaço de um homem. Vamos para sua casa, lá você encontrará tudo como antes do incêndio que iniciou sua jornada dez anos atrás, sua esposa e filhas novamente vivas e então me entregará o pagamento...

…Algumas horas de caminhada depois...

---- Sim! É isso mesmo! Está tudo como era antes! Meu Amor! Eu estou aqui! - o cliente grita a plenos pulmões ao ver novamente sua esposa após dez anos de peregrinação.

---- Nossa! Eu não lembro de muita coisa, achei que eu fosse morrer aquele dia. Onde você estava? - Pergunta a esposa.

---- Você morreu aquele dia meu amor. Eu que deveria ter entrado na casa para salvar as meninas, não você!

---- Como assim? As meninas estão bem, acabei de vê-las indo brincar na montanha!

---- Sim... Agora estão bem. Durante dez anos andei pelo mundo, fazendo negócios, procurando por magos, feiticeiros, deuses e demônios que por ventura pudessem me ajudar a ter você novamente. Eu te conto depois... Onde estão as pequenas?

---- Brincando na montanha, como sempre... E quem é este senhor?

---- Ah! É um mercador de histórias... O primeiro que pôde me ajudar. E acho que agora ele quer seu pagamento.

---- Sim, eu quero! Mas, não se apresse. Tempo não me falta. - o mercador diz calmamente.

---- Tome então o velho osso saltador. Espero que lhe seja útil como foi pra mim. Serviu-me para que eu fosse incansável buscando uma solução para meu problema. Agora não preciso mais dele, graças a seus serviços viverei e envelhecerei junto com a mulher que eu amo e minhas filhas.

---- Obrigado. - O mercador toma o osso em suas mãos, e imediatamente o homem tomba ao chão.

---- O que aconteceu? - a esposa grita - Por que meu marido desmaiou?

---- Deve estar exausto, passou dez anos sem dormir...

---- Mas ele está... - a esposa toca o pescoço de seu marido - Ele está morto!

---- Desculpe senhora, não podia prever um efeito assim... Nos últimos dez anos ele deve ter se esquecido de comer, beber e dormir. De qualquer forma não é problema meu... A não ser é claro, que você possa pagar pelo serviço.

---- O que está dizendo?!

---- Posso trazer seu marido de volta, desde que tenha algo que eu deseje.

---- Só o que tenho é a minha vida, o amor de minhas filhas e minha casa. O que poderia lhe dar?

---- Poderia me devolver a sua vida, sua casa e suas filhas... Veria seu marido vivo mais uma vez e poderia pelo menos se despedir dele.

---- E pra onde vai nos levar?

---- Devolverei para onde vocês já estavam. Os antigos domínios da velha morte.

---- Ele passou mesmo dez anos vagando pelo mundo para nos salvar?

---- Sim... Ele passou...

---- De certa forma, acho que devo isto a ele...

---- A escolha é sua. Seu marido pagou para que você e as meninas pudessem viver. Talvez não quisesse que vocês morressem para que ele pudesse viver sem vocês.

---- Não! Ele queria que nós ficássemos juntos!

---- Provavelmente esta era sua intenção, mas, seu pedido foi esposa e filhas novamente vivas em troca do osso mágico que o mantinha acordado.

---- Eu posso lhe pedir do jeito certo? Todos nós juntos? Vivos, felizes e juntos?

---- Não se for pagar com a sua vida, sua casa e suas filhas.

---- Existe algo mais que possa querer além disso? Algo que eu possa buscar, fazer?

---- Receio que não. Seu marido teve muita sorte em encontrar este pedaço de osso, não creio que a fortuna visitará sua família duas vezes seguidas...

---- Então faça seu trabalho. - A esposa chora - Eu pagarei seu preço!

)

Havia um incêndio no celeiro que em pouco tempo alastrou-se para as árvores, alcançou o monte de lenha e finalmente envolveu toda a casa. O homem que acordou apavorado com seus sonhos carregou sua esposa já desmaiada em seus braços até o lado de fora onde então tombou ao chão. A mulher acorda com a queda e ouve a voz de sua filha gritando entre as labaredas do celeiro. Outra menina parecia estar gritando dentro da casa. O marido acorda em tempo de dizer para que ela não entre novamente na casa, seus sonhos já haviam lhe contado tudo. A mulher não escuta o marido e desaparece na cortina de fumaça para tentar salvar a pequena filha que estava em seu quarto. O homem entra novamente na casa, os estralos da madeira queimando já não o assustam, a fumaça já não o sufoca. No andar de cima encontra sua esposa abraçada em sua filha mais velha, próxima a uma janela cercada por labaredas que não as deixariam sair. O homem sacrifica sua pele, passa pelo fogo e suporta a dor. Perguntando sobre a filha mais nova, descobre que a mais velha havia a trancado no celeiro e iniciado todo o incêndio. A casa cai sobre eles junto com uma lagrima que não é de dor. Antes de morrer a esposa o abraça e se despede, conta sobre o preço que pagou para um último abraço. Antes de morrer a filha mais velha se arrepende da forma cruel como assassinou a irmã mais nova. Antes de morrer o homem perdoa.

Enfim, todos juntos nos domínios da velha morte, encontram-se com o mercador que sorria pela primeira vez em milênios de repetição:

---- Vejo que finalmente vocês se libertaram. Meu serviço aqui está completo.

---- Como assim? Pergunta o homem.

---- Mil vezes negociei com você sua vida em troca de sua família. Mil vezes sua família se sacrificou para que você retornasse.

---- Mil vezes?

---- Talvez um pouco mais. Talvez um pouco menos... Vocês só se lembram da ultima história, mas eu, que estive do lado de fora, lembro de cada uma delas. Você me trouxe hoje o ultimo pedaço de osso daquele homem que um dia ofendeu os deuses. Nos últimos anos, você percorreu o mundo e conseguiu localizar cada um deles, para trazer para mim.

---- Verdade? Eu lhe trouxe sempre a mesma história?

---- Sim... Mesma história, com um pedaço diferente do osso, sempre com o mesmo pedido. Já se perguntou por que tantas pessoas passam a vida inteira sem chamar a atenção de um deus ou um demônio enquanto você conseguiu fazer isto tantas vezes quantas foram necessárias para recuperar estes ossos?

---- Não. Por que?

---- Por que você é o homem que dança! Um dia o velho deus que o amaldiçoou já estava sem a força necessária para manter seu espírito aprisionado nas frações de ossos e você renasceu. Isto causou muita dor para o deus e para você, e esta é a explicação para a agonia que desde sempre sentiu em seu peito. De saber que não é um espirito completo, que parte de você continuava dançando em um castigo sem fim.

---- E o deus extinto? Por que sofreu?

---- O deus não está extinto ainda. Apenas fraco e muito doente. Tudo o que ele deseja é habitar este lugar, os antigos domínios da velha e boa morte, mas, enquanto seus ossos continuarem pulando sobre a terra dos vivos, ele não poderá realizar seu intento. Ele retiraria a maldição se pudesse, mas, tem estado fraco demais até para isto. Hoje, levarei todos os ossos que me trouxe para o pobre deus e negociarei com ele sua libertação.

---- E então o deus poderá morrer? Como eu finalmente consegui?

---- E o deus será novamente livre. Poderá morrer, renascer ou seguir sua vida conforme lhe parecer adequado.

---- E o que você ganha com isso?

---- Ganho o que sempre procuro. Uma história e uma prova...

Existe lá fora um mercador especial, um mercador de histórias, você não irá encontrá-lo por acaso, ele sempre sabe quando está sendo procurado e sempre vem ao encontro de quem segue as velhas regras. Quando você o encontra, abre-se um parênteses na história da sua vida, é uma ótima ocasião para escolher nomes felizes para seus próximos capítulos ou então inserir cenários e personagens que de outra forma não estariam lá. Ele irá lembrá-lo que sua vida é apenas uma história e que está sujeita as leis que regem todas as histórias, você lhe emprestará a sua caneta e irá negociar cada paragrafo, virgula ou ponto final. Quando o parênteses se fecha sua história recomeça, sempre com tua própria caligrafia, mas agora, com algumas notas do editor. Cada pessoa lhe dirá uma coisa diferente sobre ele, mas, o que talvez ninguém nunca lhe diga sobre o mercador e as mudanças em sua história, é que a caneta desde o início sempre esteve na tua mão.

=NuNuNO==

(Que apenas registrou e, espera que o homem, o mercador, o deus e você estejam satisfeitos.)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 23/08/2013
Reeditado em 25/08/2013
Código do texto: T4448580
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