Criado-Mudo

Prólogo

Eu não fiz por mal. Eu só me sentia sozinho. Tantos anos sem falar com ninguém, sem ter um amigo. Ela parecia legal e parecia compreensiva. Eu não quis isso, mas parece que ela não estava preparada pra mim. Eu tinha ensaiado várias vezes sozinho, para não cometer nenhum erro quando a hora chegasse. Foi muito difícil porque ela raramente estava sozinha. Quando finalmente eu tive uma chance, fiquei super excitado e acabei gritando. Não era pra gritar. Estúpido, estúpido, estúpido. Ela se assustou e acabou sofrendo um infarto

Por favor, me perdoem. Eu quero muito que eles me perdoem, mas tenho medo do que possa acontecer se eu falar.

É melhor eu ficar calado.

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Eu comprei um criado-mudo em uma pequena feira hippie perto da minha casa e logo no primeiro dia ele me agradeceu por tê-lo tirado de lá. Ele reclamou do cheiro e disse que a maioria daquelas menininhas bonitas fediam a maconha e desodorante vencido. Eu não dei muita ideia porque estava ocupado escrevendo um livro sobre prosopopeia.

No segundo dia ele começou a me contar sobre sua vida.

Ele nasceu bem antes de quase tudo que conheço hoje em dia. Ele era um tipo de arvore que nasce perto do mar, e logo no começo da vida virou um machado de um viking grande e vermelho. Eles conquistaram metade do lugar que conhecemos hoje como Europa e foram invencíveis. Pela voz dele (que lembrava muito a do Elton John) deu pra perceber que ele sentia muita falta daquele tempo. Quis dizer algo pra fazê-lo se sentir melhor, mas ele não parava de falar. Disse que pouco depois da morte do viking (que ele chamava de Erick, não sei por que), ele ficou muito tempo guardado em um porão até ser descoberto por vários padres cristãos que o transformaram em uma cruz.

Eu acabei caindo no sono.

No outro dia eu pedi desculpas por ter dormido e fui trabalhar. Quando cheguei em casa ele estava virado pra janela imerso em algum tipo de banzo. Arrumei a casa e quando Selene reinava no céu, ele continuou sua história.

Depois de ter se tornado uma cruz, por muito tempo carregou um Jesus Cristo com feições negras, que se tornou asiático e por fim virou o Jesus europeu que estamos acostumados. Foi levado à frança e ficou muito tempo exposto em uma praça. Depois de alguns anos foi derrubado e transformado em uma guilhotina. Ele não se orgulhava desse tempo e dizia que mesmo tendo matado muitas pessoas em guerra no passado, matar alguém desarmado era uma covardia. Ele até disse que algumas das pessoas que morriam possuíam seu corpo por algum tempo. Foi um período curto, mas que pareceu uma eternidade. Foi levado pra um pequeno casebre onde ficou sem ver a luz do dia por décadas. Foi redescoberto por um artista e desmontado. Ele disse que pararia por aqui hoje porque eu estava bocejando demais. Despedimos-nos e fomos dormir.

Quando amanheceu ele tinha decido as escadas. Disse que ficava mais bonito quando a luz do sol batia em suas costas e sombreava suas gavetas. Eu concordei com ele e fui trabalhar. Na hora do almoço comi batatas cozidas que não me fizeram bem e tive que voltar pra casa mais cedo.

Quando cheguei em casa perguntei se ele poderia cantar umas músicas que eu tinha imprimido no trabalho. Ele sorriu e disse que sim. Eu levei as folhas com as letras até ele e perguntei onde eram seus olhos se é que ele tinha algum. Ele disse que era só colocar as folhas na gaveta.

Adormeci sorrindo com ele cantando Your Song pela décima vez.

Ainda sentindo um leve mal estar, não fui trabalhar e passei o dia todo escrevendo. À noite, ele continuou.

Contou que virou um cavalete e que adorava ser um instrumento de valor na criação de obras significativas. Ele fez alguma comparação entre a violência de uma batalha e o processo de criação que não prestei muita atenção. Disse que era muito gratificante ver obras que ajudou a pintar sendo apreciadas hoje em dia. Eu perguntei que pintor ele ajudou e ele sorriu. Depois de terminar mais de sessenta quadros, o pintor morreu e ele foi leiloado. Uma rica mulher pomposa que estava de mudanças o comprou. Foi posto em uma caixa e lá ficou até que o navio que o transportava naufragou perto da America. Ficou uma centena de anos em baixo d’água até ser encontrado por pessoas que a principio julgou serem índios mais depois viu que eram muito civilizados pra isso e muito selvagens pra serem civilizados. Eu disse que empregar palavras como selvagem e civilizado pra definir sociedades era um tanto relativo e ele me pediu pra não atrapalhá-lo de novo. Foi transformado em uma boneca de madeira e participou de vários rituais espirituais que primeiramente definiu como vodu, mas depois achou melhor não rotular algo que não conhecia. Nesse período, descobriu que muitos dos fantasmas da época que era uma guilhotina ainda viviam nele. Uma velha chamada Madalena o exorcizou e o tomou como seu talismã. Quando Madalena morreu, seu filho o vendeu pra um turista como um suvenir e ele foi um medalhão de um a carro por uns seis anos. O carro acabou em um ferro velho e ele no lixo.

Ele parou de falar por alguns instantes. Eu perguntei se havia algo errado e ele disse que estava cansado, mas que continuaria se eu quisesse, já que estava quase no fim. Eu falei que estava sem sono algum e então ele continuou.

Disse que depois de ser resgatado no lixo ele foi transformado em uma infinidade de móveis que não deram muito certo. Terminou como um criado-mudo e foi vendido a uma velhinha charmosa que gostava de chá e o usava como penteadeira. A velha morreu inesperadamente em um acidente que ele não quis comentar e ele ficou um tempo parado em seu quarto. Depois de muita burocracia foi acordado que ele iria para a neta da senhora. Ela o pegou e o botou a venda na feira hippie.

Eu perguntei se ele achava ruim pertencer a um pretenso escritor que passava mais tempo trabalhando em uma repartição pública do que escrevendo e ele disse que já viveu melhores dias, mas que também já viveu piores. Disse que estava cansado de ser desmontado e perguntou se eu planejava me livrar dele algum dia. Eu respondi que não e disse que não deixaria ninguém tocá-lo, nem que deixasse isso por escrito em meu testamento. Ele sorriu e me agradeceu.

Eu perguntei a ele porque quis falar comigo. Ele disse “sei lá, você pareceu um bom ouvinte” e nós dois sorrimos.

No fim das contas, ele não era um criado tão mudo assim.

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Epílogo

Ele foi um ótimo amigo. Dividimos várias histórias e ele me apresentou a sua família que ficou maravilhada. Eu vi quando ele se casou, vi quando publicou seu primeiro livro, vi quando teve sua primeira filha e o vi ganhar um Prêmio Jabuti. Ele morreu de câncer aos 50 anos. Fiquei em sua família até a sexta geração até que um dia um deles pôs fogo em mim alegando que eu era “obra do demônio”. Virei cinzas e hoje em dia vivo em várias partes do infinito.

A Vegetação Solar é a mais bonita do universo.

Marcus Stanley
Enviado por Marcus Stanley em 02/09/2013
Reeditado em 10/09/2013
Código do texto: T4463483
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