As dores do silêncio

Naqueles tempos elas não tinham vez, nem voz. Eram educadas para o silêncio. Levavam consigo todo o peso da culpa de Eva. Eles diziam que elas eram as culpadas e elas nada podiam fazer, apenas abaixar a cabeça e ficar em silêncio. Por isso não podiam mais abri a boca.

Mesmo sendo a mãe do Senhor, ela também era uma das mulheres daquela época do silêncio. E o silêncio lhe levou a reflexão, a oração e isso lhe deu a fortaleza. Mas essa fortaleza que vinha de Deus era também humana.

No templo lhe foi dito a profecia "Este menino está aqui para a queda e o ressurgimento de muitos em Israel, e a ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma, a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações" , e ela a guardou em sua mente. Desde aquele dia o Espírito Santo a preparava para o pior momento de sua vida lhe revelado anos antes naquele templo por Simeão.

Quando naquela madrugada João veio lhe avisar que seu Filho Amado havia sido preso... Ele nem precisou abrir a boca. Ela já sabia ler o silêncio. Ela viu em seus olhos. Ali a espada lhe machucou o coração pela primeira vez. Ela tremia, mas mordendo o lábio e num suspiro dolorido se manteve firme e pegando seu enorme manto azul da cor da noite saiu com o discípulo amado para enfrentar seu pior medo. Encarar sua maior dor.

Em meio aquela multidão ela ouvia tudo que uma mãe devia ser proibida de ouvir sobre um filho. Quem disse que palavras não machucam? Cada mentira, cada insulto doía nela mais que os empurrões e as pisadas daquela multidão. A dor física não era nada comparada a dor da alma. E ela aguentava calada.

Queria poder gritar, queria poder salvar seu menino com as próprias mãos mas parecia ser ela contra o mundo. Não conseguia vê-lo dali. Em meio aos escárnios e xingamentos, a espada lhe transpassa a alma de novo ao ouvir da boca de Pilatos que o seu Filho seria açoitado. Ela sente o chão sumir debaixo de seus pés. Por um minuto ela fecha os olhos rezando para que aquilo seja um pesadelo. Mas João ao tocar seu ombro ela de novo volta a realidade e corre até o lugar do açoite.

Cada estalo de chicote ecoava em sua cabeça... Um eco de dor. O seu menino era ferido no corpo e ela ferida na alma. Aquelas palavras presas em sua garganta saiam pelos olhos em forma de lágrimas. Tantas lágrimas que deixavam sua visão turva, tanta dor, mas tanta dor que a cada piscar de olhos para uma lágrima descer lhe doía o espírito.

E no meio de tanta dor ela ainda teve que ser mãe para dar forças a Madalena que como uma garotinha estava caída por terra desesperada. E com seu amor materno ela levanta aquela menina em corpo de mulher e a abraça. Com a cabeça de Madalena no seu ombro ela continua a ver o flagelo. E a fortaleza do Espírito Santo era o que a deixava em pé.

De uma das janelas da torre ela vê aquela mulher ricamente vestida aos prantos. Os olhares das duas se cruzam e a mãe do Senhor com um único olhar foi capaz de acalmar aquela senhora rica, que depois se soube ser a mulher de Pilatos. Ela também como as mulheres da época fora calada, apesar de implorar o marido pra não condenar o inocente que ela viu em sonhos. Ali naquele momento não existiam riqueza e a pobreza e sim o silêncio compartilhando a dor de duas mulheres num único olhar.

Jesus foi levado todo machucado, ferido no corpo e ela ferida na alma. Sem rumo sentiu sozinha em meio a multidão que saia feliz com o açoite mas ainda ouvindo escárnios maldosos. Ela caminhou até as poças se sangue e se ajoelhou observando seu reflexo naquela imensidão vermelha. Sangue do seu sangue ali derramado e agora seu reflexo era distorcido pelas lágrimas que pingavam... E ela nada mais via a não ser aquele vermelho.

Ao voltar em meio da multidão e ouvir que ele seria morto na cruz por seus algozes ela tem um repentino lapso de que perderia as forças. Sem saber pra onde ir ou o que fazer se encostou naquela parede de pedra úmidas e ficou ali como se segurasse seu coração transpassado de dor. Respirava ofegante e queria que tudo aquilo fosse um pesadelo. Desejava acordar. Ela estava acabada por dentro quando João lhe disse que se corressem poderiam vê-lo de perto. Mas ela sacudia a cabeça negando... Não queria aquilo, não queria ver aquilo. Fechou os olhos e se lembrou de cada momento daquele menino que nasceu de seu ventre.

Era a última vez que o veria de pé, andando... O desespero a fez acordar, abrir os olhos e segurando firme nas mãos de João se deixou levar por entre as vielas de Jerusalém. Ela corria sem rumo, não sabia pra onde ir apenas seguia João e ouvia as vozes furiosas gritando. Sentia o desespero de Madalena atrás dela que queria seu colo, queria uma mãe... E ela segurava com força a mão de Maria como se aquilo a amparasse totalmente.

Quando viu seu filho se aproximar com aquela enorme cruz nas costas. A pontada em seu coração seu mais dolorida ainda. E agora ela não via mais ninguém pela frente. Não via os robustos soldados romanos, não ouviu os xingamentos do povo, eles eram só vultos.

E como todo seu amor de mãe reuniu forças que só podiam ter sido dadas por Deus e abraçou o seu menino. Ela ali não podia fraquejar. Ela tinha que dar forças era pra Ele. Ela era agora a mãe forte que segurava o filho nos braços. E aquele abraço de despedida foi tão intenso, tão profundo, que era como se ele voltasse ao seu ventre. Como se mãe e filho fosse um só. Suas lágrimas misturadas, seu sangue em seu véu por alguns minutos aquele encontro foi uma eternidade. Era como se o tempo parasse. Era como se Deus concedesse aos dois um momento de paz em meio ao horror.

Ela foi arrastada, por vários soldados. Nunca se viu força tão grande. Como uma leoa defendendo o filhote o abraçou com todas as forças do mundo. E o abraço só terminou pela força bruta dos homens que a jogaram naquela viela empoeirada. Mas o olhar de seu Jesus... Ah! O olhar dele curava qualquer dor. E o bálsamo que acalmou sua dor por uns minutos foi aquele olhar. E sem dizer nada Jesus sacudiu a cabeça como se quisesse dizer a ela que aquilo que estava acontecendo era o certo. E ela também afirmou com a cabeça... Sem nenhuma palavra eles declararam todo seu amor um pelo outro. E Ele continuou seu caminho.

Depois que Jesus se foi ela caiu no chão e chorou... Agora ela podia chorar, não na frente Dele. Ela tinha que ser forte por Ele. João, Madalena e as outras mulheres que estavam com ela sabiam que ela precisava desse momento de fraqueza. Ninguém, nem mesmo ela, podia ser forte o tempo todo. E mais uma vez sem dizer nada ela se levantou lentamente enxugando as lágrimas com seu manto azul e olhando as manchas de sangue que ele deixara ali levantou. Ela beijou o manto com um amor inexplicável e aquilo lhe deu forças para continuar.

Ao chegar ao calvário como todos os pobres, mulheres, doentes daquela época... Como qualquer um que os romanos menosprezados, Maria e seu grupo teve que se manter a distância. Mal via seu filho, mas sentia toda sua dor. Certo momento os soldados tomados por toda crueldade humana descobriram que ela era a mãe do condenado. E com um prazer de ver o sofrimento alheio lhe mostravam os cravos que seriam pregados em seu filho. Além de tudo ela teve que suportar a maldade humana naquela hora. Os deboches, os escárnios, tudo a machucava mas ela não abriu a boca, não saiu do lugar, se manteve firme. E isso foi o motivo da graça dos soldados terem terminado. As outras mulheres a abraçavam em solidariedade mas o que acontecia era que quando abraçada Maria lhes dava era o colo de mãe. Ela confortava sendo confortada. Ninguém entendia a presença de Deus naquela mulher.

As batidas do martelo nos cravos e os gritos de dor de Jesus mais uma vez a fizeram cair de joelhos naquele terreno arenoso. E não podendo gritar sua dor, ela mordia o lábio com tanta força a ponto de fazê-lo sangrar enquanto em suas mãos apertava um punhado de pedras com tanta força como se pudesse passar sua dor para elas... Quando a cruz foi erguida ela deixou as pedras escorrerem entre seus dedos e parou de morder o lábio e novamente ficou de pé.

Pouco antes das três da tarde a tempestade se formou, o céu ficou negro como a noite. Aquilo fez com que o povo que clamava pela morte de Jesus saíssem desesperados de medo. Ela não via o céu escuro, não sentia o vento gelado ou percebia os estrondos dos trovões só tinha olhos para o filho na cruz. Caminhou até ele e com as mãos trêmulas tocou em seus pés. E chorou abraçando e beijando os pés do seu filho.

Ali ela não conseguiu mais se manter forte perto Dele. Ela chorava e com os lábios tremendo tentava falar... Mas a voz saia baixa, quase imperceptível dizia:

- Carne da minha carne, coração do meu coração, espírito do meu Deus...

E olhava nos olhos de Jesus. O seu olhar implorava que Ele a levasse junto. Ela desejava morrer com seu amado Filho. Ali, ela se despiu de toda força de Deus e o que víamos era uma mãe sentindo a pior dor do mundo. Ali ela era humana, frágil, fraca, machucada, implorando pela morte...

Jesus não querendo mais ver a dor de sua amada mãe mal conseguindo falar disse:

- Mulher eis aí teu filho.

Foi então que ela percebeu João atrás de si. E o apóstolo a amparou com tanto amor ouvindo seu mestre dizer.

- João eis aí tua mãe.

O apóstolo a abraçou e chorou em seu ombro e Maria ainda olhava nos olhos de Jesus e ele com um gesto com a cabeça lhe mostrava Madalena e as outras mulheres... Ela entendeu, a partir daquele momento ele lhe entregava todos... Ele lhe dava todos os filhos do mundo. Ela entendia agora o amor que ele tinha pelos homens, ela agora aceitava o porquê de seu sacrifício. Ela naquele momento foi tomada pelo amor de Deus. E olhando nos olhos de Jesus fez um gesto com a cabeça de afirmação. Ela aceitava ser a mãe dos homens... E ela fechou os olhos e se lembrou do anjo Gabriel lhe dizendo que seria mãe do filho de Deus e ela lhe dizendo sim... E ao abrir os olhos disse baixinho sim para Jesus e ele esboçando um sorriso deixou uma lágrima cair.

Poucos minutos depois ela ouviu seus últimos gritos na cruz e ao vê- lo morrer mais uma vez colocou a mão no coração como se pudesse tirar uma espada transpassada ela chorou... E chorou todas as dores do mundo. Chorou todas as palavras que não pode dizer.

Ao receber o corpo de seu filho nos braços, ela parecia estar anestesiada, entorpecida. Mas ao ver seu menino em seus braços, beijou sua testa gelada. Acariciou sua face e por instantes fechou os olhos e sentiu como se ele fosse aquele bebê na gruta em Belém. Abriu os olhos e vendo o cadáver disse em seu ouvido muito baixinho:

- Nem a morte pode acabar com um amor tanto grande quanto eu tenho por você meu amado filho. E entendo agora tudo, serei mãe da sua amada humanidade.

E antes do dia terminar viu a pedra ser colocada na porta do túmulo, ficou por uns minutos ali parada sentindo o vento no rosto, se despedindo das dores do silêncio e sendo avisada pelo vento que a esperança iria renascer.