Querido Diário,

Gostaria de te estraçalhar completamente, arrancar-te a giletadas as minhas memórias das tuas páginas, riscando-as em seguida, perfurando-as, inutilizando-as, enfim, imputando-lhes, ainda, inverdades, subversões, testemunhos imemoriais sem rogo, o estigma asséptico das páginas virgens ainda não lidas.

Não satisfeito, Querido Diário, gostaria eu de tomar emprestado do Cazuza aquele flit paralisante para, em um momento de ternura e bondade, potencializar o meu repúdio ao teu senso de humanidade descabido, bloqueando em seguida todo o sempre das tuas/minhas virtudes estocadas, abortando-as, esganando-as, eviscerando-as, provando a ti seres um altruísta piegas, um mero guardador de papel velho, banquete das traças.

Sabe, Querido Diário, se tu tivesses mãe, eu meteria bronca na velha, para ter a certeza de que cometi um pecado original, de que impedi, efetivamente, a perpetuação da tua espécie.

A propósito, Querido Diário, engula em seco: vou furtar dinheiro de cego, dar rasteira em ancião, agiotar os insolventes, matar passarinho, extorquir miseráveis, roubar doce de criancinha, praticar cafetinagem, afogar gatos, galinhas, perus; detonar lagartixas, sapos, cobras; não vai sobrar sequer um desses viventes para contar a minha/tua história, Querido Diário!

Querido Diário, antes que os arautos do Divino tomem conhecimento das minhas intenções, instituirei uma verdadeira hecatombe sem precedentes, sem chances para toda a humanidade. No final de tudo isso, quando não restar mais pedra sobre pedra, nem sequer uma mísera gota de orvalho que queira, esgueirando-se sob o reflexo do sol, transformar-se em arco-íris, registrarei todo o ocorrido no bojo de nuvens brancas com o carvão remanescente, tomando nota das minhas atrocidades de forma detalhada, para ter a certeza de quando tu já era, eco de foste, portanto, um pretérito perfeito...

Por fim, Querido Diário, quero dizer-te que, provavelmente, também morrerei, porque equivalho a partes de ti, a frações dessas mentiras deslavadas que conduzimos na base da bravata, dessa ficção abrupta que se nos atiça a alma e nos impele à criação, por conta dessa minha/tua falta de trato para lidar com realidades por demais aparentes. – sou desses seres imaginários que pensam que pensam e, por conseguinte, que pensam que existem; eu sequer existo; sou talvez apenas a superfície amedrontada da próxima lâmina de celulose com medo de virar rabisco de gente grande, retroalimentação, esses aõs no vão desgovernado do pensamento.

P.S. Boa noite, Querido Diário!

Masé Quadros
Enviado por Masé Quadros em 17/08/2014
Reeditado em 18/11/2020
Código do texto: T4926385
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.