Nit

Nit era um garoto apaixonado por livros. Seu amor chegou ao ponto de trocar aquelas corriqueiras diversões infantis, por horas de leitura.

Mas isso não lhe bastava. Sentia que necessitava de algo mais, o que o fazia se deter horas além na observação de suas fontes de inspiração. Questionava aos pais o motivo da criação destas obras, deixando seus genitores embaraçados, já que nunca foram afeitos a leitura. Admiravam a dedicação do filho, comentando com conhecidos que finalmente teriam alguém letrado na família, depositando expectativas no futuro profissional do garoto.

Foi quando em um dia de leitura, algo surreal aconteceu. Nit foi tragado pelo livro. Seu corpo foi absorvido de tal forma que não restou nada de sua existência no mundo fora do literário. Nem seus pais tiverem mais ideia de o ter concebido. Registro de nascimento e qualquer outra fonte documental, simplesmente sumiram.

O desespero do garoto, que a princípio só, se viu diante da angústia de não mais rever os pais e o mundo que conhecia, fez com que começasse a se habituar ao novo estado. Percebeu que o livro se tornara todo branco. A media que percorria espaços e tentava criar alguma coisa, as palavras surgiam, como se ele fosse o desenvolvedor de toda a narrativa. Na dúvida, ia e voltava, criando embaraço na forma de escrita, já que as idas e vindas promoviam aquele desgaste dos livros de compreensão mais complexa, onde na busca pelo entendimento, o leitor fica zonzo ao tentar acompanhar os passos do escritor.

A grande revelação veio em um dia que estava cabisbaixo. Alguém de fora abriu seu livro, embora seja uma contradição dizer seu já que foi o livro que o tomou para si. Parecia uma aurora a abertura da capa dura e o olhar de uma menina, que apenas olhava as letras, pela curiosidade de manusear. A medida que tentava ser visto, Nit fazia o livro se desenvolver mais e mais, o que o fez perceber que não conseguiria se libertar desta forma.

Foi quando a menina retornou, agora empenhada na leitura, sentada em uma poltrona e recusando beber até mesmo um copo de água gelada que sua mãe ofertara. Nit não entendia como o livro chegou às mãos daquela doce criatura e muito menos como se deu o fenômeno que lhe correra. Mais a medida que a menina aprofundava a sua leitura e começou a tentar imaginar aquele pequeno Nit, que em sua mente, aparecia como um garotinho que associava a imagem do priminho, que tinha por hábito tomar conta, nas visitas de sua tia que morava no sertão.

Foi a grande explosão de sensações que fez com que Nit percebesse. A medida que tomava forma forma na imaginação da sua amável leitora, se tornava mais vivo fora do livro, podendo ser carregado na mente das pessoas e existindo além de seus estado literário. Descobriu que essa seria a sua forma de fugir e que para isso precisaria criar mais, a ponto de que outras pessoas fossem instigadas a resgatá-lo. Mais do que nascer nas mentes, precisaria depois ser cuidado por elas.

Certa vez, leu sobre um tal de Sócrates, que comparava o ato de fazer nascer ideias nas mentes das pessoas com o trabalho de parto que sua mãe realizava. Nit pensou que fazer nascer uma criança é importante, mas cuidar do desenvolvimento posterior ao nascimento se faz ainda mais importante, já que é a garantia de algo além do ato mecânico de fazer nascer, e que os médicos já desempenhavam tão bem. Precisava não apenas surgir na mente dos leitores, mas também formar um com eles um compromisso de adoção, a ponto de andarem juntos nas diversas resoluções do deu dia-a-dia.

Nit passou a compreender que não eram as pessoas que dependiam dele, mas sim, ele que dependia das pessoas para existir e que seu livro estaria sempre de portas abertas, para que pudesse ser carregado, não se sabe para onde e nem para que fins. Seu desejo é viver além de sua condição literária, fazendo com que sua vontade criativa lhe dê foças para resistir a dor da angústia e se esgotar, a ponto de ser leve como um pensamento e com isso poder virar uma das tantas nuvens que habitam a cabeça de cada uma daquelas pessoas. Viver, pensou ele, é estar sempre busca de deixar de ser alguma coisa.

Bruno Azevedo
Enviado por Bruno Azevedo em 24/08/2014
Código do texto: T4935073
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