Transcendentes Sentimentos

Andava cansado naquela primavera do ano inesquecível de minha existência. Meu trabalho como bibliotecário tornara-se enfadonho, o cheiro de fuligem dos velhos livros não mais produziam borbulhas em minha cabeça, e nem mesmo aquele café com gosto de madeira velha servido no fim da Rua das Tristezas pela singela dona Vera nos fins de tarde cinzentos e nauseabundos me agradavam. Os cigarros eram fumados apagados e meus olhos fundos e marrons miravam constantemente o chão de meu casebre lúgubre baixo, enregelado em uma ruelinha fantasmagórica sem saída chamada Rua das Lágrimas Secas, rodeada por árvores desnudas e lacrimejantes abandonadas pelo mal humorado Dosto, o único jardineiro da cidadela. Talvez meu único regozijo sincero era chorar...e ruminar aqueles antigos crimes cometidos com a minha Violeta - como eu a chamava na época - em preto e branco com armas cinzentas e grandes cigarrilhas dependuradas no beiço flácido. Foi rememorando essas cenas cinematográficas dos anos 40 que esbarrei em um ser com trejeitos espectrais (!) quando voltava da biblioteca, virando a esquina do Cotovelo Trincado minha malcheirosa barba chocou-se contra aquele rosto translúcido e cadavérico. Oh, não podia crer! Não, não podia ser! A minha velhice estava pregando viagens lisérgicas em minha débil e estéril mente! Sim, essa era a única razão para o que via. Era Violeta, com as suas mesmas fartas bochechas de quando nos conhecemos, em idos de tempos imemoráveis - talvez umas 15 eras glaciais - e, por mais estranho que aparentou-me, ela me reconhecia, pois seus olhos protegidos por dois círculos de vidro esverdeados e grandes perscrutavam meus mapas cerebrais e memórias inefáveis. A situação aguçou quando proferimos, no mesmo instante em que o sol lançou um tênue raio na grama úmida onde havíamos pousado, a palavrinha mágica de nosso grimório do amor de 15 eras glaciais anteriores: ''Névoa''.

Já estávamos na minha choupana quando abri os olhos, e vislumbrei ''minha'' Violeta sentada na cadeira aveludada de balanço acariciando meus gatos amorfos e anônimos empertigados, e lendo um livreto empoeirado de poesias tristes do qual me ocupava. Levantei-me com dificuldade e hipnotizado, quando seus olhares telepáticos faiscaram uma fagulha em minh'alma...há exatas 15 eras glaciais Violeta desapareceu após uma noite cálida de afagos e suor vulcânico, quando escalávamos a montanha daquelas paixões misteriosas, mudas e transparentes. Era uma manhã de névoa densa que enxia os pulmões de melancolia. Conjecturei que essa criatura feérica poderia estar para mim como o Neandertal foi para o Sapiens Sapiens; mas a intimidade presente em seu cheiro inesquecível era aquela de sempre.

Após dias, meses, anos - talvez eras glaciais - trancafiados dentro de minha pocilga, envoltos em uma aura enfeitiçada por diálogos díspares e anacrônicos nossos lábios grudaram-se e os decrépitos barris de vinho explodiram de alegria ao avistarem que enfim eu e Violeta nos reconhecemos, novamente, 15 eras glaciais - ou mais - após o seu desaparecimento.