454-A MALDIÇÃO DA VELHA ESCRAVA -

Lá pelas bandas do Pico da Ingazeira, muito além do Chapadão dos Antunes, está a fazenda Itambaré. Fazenda antiga, cujas origens remontam à época dos bandeirantes, pois foi por entre seus desfiladeiros que os intrépidos paulistas chegaram ao norte de Minas, na busca desenfreada por ouro e diamantes.

Hoje tudo está mudado. A estrada de terra foi soterrada pela rodovia Belo Horizonte-Brasília. A região, antes só visitada de quando em quando por mascates e tropas de burros, hoje é cruzada por turistas ávidos de conhecer aquela imensidão de inusitada beleza panorâmica.

As pousadas se multiplicam por toda a parte. Algumas são adaptações dos velhos casarões, das sedes e das instalações coloniais. Outras, construções modernas, com quadras para esportes, piscinas e diversas modernices.

A fazenda Itambaré transformou-se em Pousada Itambaré. As construções tradicionais da fazenda — casa sede, senzala, armazéns, moinho, monjolo — não foram aproveitadas para a nova pousada. Aliás, por sua situação, encravadas no fundo de um grotão, cercadas de altos morros por três lados, não se prestavam mesmo ao projeto novo, que colocou as conveniências em lugar elevado, de onde a vista abrange toda a região, numa espetacular visão a se desdobrar até horizontes infindos.

Por isso, ninguém vai até à antiga Itambaré. Aliás, às ruínas da velha fazenda.

Fiquei sabendo dessas ruínas por mero acaso, quando um garoto da pousada falou, numa roda de turistas, na qual eu estava presente, sobre um local onde apareciam assombrações, mulas-sem-cabeça e saci. Ninguém acreditou na conversa do garoto. Mas fiquei curioso e, mais tarde, dei um jeito de conversar a sós com o moleque.

— Que negócio é esse de assombração?. — Perguntei-lhe, assim que angariei sua confiança.

— É na fazenda velha. — Respondeu-me o garoto, meio sem vontade de entrar em detalhes.

— Fica longe daqui?

— É. É longe. Num lugar difícil de chegar.

— Não acredito em assombrações. Quero ir lá. Você me guia?

— Cruz credo!

Mostrando-lhe uma nota de cinqüenta reais, insisti.

— Está com medo? Esta nota é sua, se você me levar até esse lugar.

No dia seguinte, acordei cedo, e quando tomava o café, vi Jeremias (este era o nome do garoto) me esperando, meio escondido à sombra de frondosa árvore, no jardim da pousada.

— Então, vamos?

Partimos, rumo ao leste. O sol da manhã, batendo em minhas costas, já indiciava o calor do dia. Levava uma mochila com frutas e sanduíches, binóculos e a câmera digital. Subimos e descemos as serras, pois é uma morraria sem fim, naqueles confins. Pelas nove horas, eu já estava suando e um pouco cansado.

— Ainda falta muito? — Indaguei .

— Tamos no meio do caminho. — Respondeu Jeremias.

Fizemos uma parada à sombra de um frondoso pau d’óleo. Reparti meus sanduíches com o garoto e descansamos um pouco.

— Não mora ninguém por aqui?

— É tudo mato, a terra num presta. Lugar amaldiçoado. — Jeremias falava com vagar e lançava olhares furtivos ao derredor. .

— Está com medo?

— De dia, num tem perigo. É de noite que eles aparecem.

— Eles, quem?

— Sei lá. Fantasmas, bruxas, assombração.... — Dizem.

— Você já viu alguma coisa:

— Não vi nem quero ver. Deus qui mi livre.

Pelo meio-dia, avistamos a sede da fazenda. Meio escondida pela mataria que voltava a tomar conta do local.

— Eu fico por aqui. — Avisou Jeremias. — Se o senhor quiser, pode ir até lá sozinho. Espero aqui.

Não argumentei com o garoto, pois dava para sentir o terror estampado em seu rosto. Aproximei-me de câmara em punho, fotografando tudo.

O que restara da fazenda estava em decadência total. As gameleiras cresceram sobre paredes e telhados e suas raízes foram, pouco a pouco, abraçando tudo num enlace destruidor. O vento, a chuva e o sol se encarregavam de ir derretendo as paredes de adobe e pau-a-pique. Pelo chão, pouca vegetação: uma areia fina vai cobrindo tudo tal qual um manto alvacento.

O calçado rangia sobre este terreno estéril. À medida que eu chegava mais perto, a lugubridade ia pouco a pouco tomando conta de mim. Subi por uma rampa íngreme, de pedra e calhaus, restos da escada que conduzia à entrada principal.

Percorri salas e quartos, tudo caindo aos pedaços. Os assoalhos de madeira, apodrecidos, mostravam os barrotes quebrados e deixavam ver o porão alto, onde certamente era a senzala. Desci pelos fundos do velho casarão, e fui até algumas outras construções, todas semidestruídas. Um grande armazém destelhado era apenas esqueleto: as paredes gastas, apenas as peças de madeiras mantinham-se de pé, escoradas umas às outras.

Fui até mais longe, onde divisava uma pequena construção no fundo de uma grota, que parecia ser um moinho, pois pelo lado de fora se podia ver os restos de uma roda-d’água.

Quando, na intenção de entrar, pisei a soleira, quase desabei, ao ouvir o som cavo de uma voz vinda do fundo da pequena construção.

— Quem vem lá?

Apesar da claridade do sol a pino, pois era pouco mais do meio-dia, a escuridão era a de uma caverna. Saltei para trás. Confesso que tremia quando vi surgir das trevas uma forma humana, que mais parecia se arrastar do que caminhar.

Assombração de dia não existe. Deve ser algum maluco pra morar nesse cafundó.

Minha mente tentava freneticamente explicar aquela aparição. Voltei do susto e da imobilidade e fui fotografando o indivíduo. Até então não sabia se era homem ou mulher, pois as feições indefinidas escondiam-se sob uma cabeleira centenária e os andrajos não davam a menor pista.

— Quem é você? — Consegui finalmente manifestar-me.

Sem sair do escuro, onde apenas o brilho dos olhos era visível, o vulto me respondeu;

— Sou a filha de Belmira. Não tenho nome, sou pagã. Não fui batizada.

— E quem foi sua mãe...a Belmira?

— A história é comprida. Vai demorar. Se quiser, entra aqui e senta neste tronco, que lhe conto tudo.

Depois das primeiras palavras, a voz foi se tornando menos tétrica. Talvez o exercício das cordas vocais afinara o som. Pude notar que era uma voz de mulher.

O tronco que me oferecera estava rente à soleira. Sentei-me a contragosto, mas se chegara até ali, não iria sair sem descobrir quem era aquela mulher ou sem ouvir o que ela tinha para me contar — que, pelas primeiras palavras, parecia ser uma historia daquelas!

Então, fascinado e amedrontado ao mesmo tempo, ouvi a história da filha pagã nome de Belmira.

A fazenda Itambaré era imensa, podia-se andar um dia seguido em qualquer direção e não se chegava aos limites. O proprietário, Capitão Onofre Gorgulho, era destemido e à gleba inicial, recebida por herança, numa cadeia de inúmeras gerações, havia acrescentado milhares de alqueires, apenas se apossando, tomando conta, como se dizia.

Capitão Onofre não se casara. Era o terror das mulheres da senzala. Seus escravos contavam-se para mais de 100, sendo a maioria mulheres. Não havia negra que escapava à sanha do coronel, cuja cobiça ia das maduras até às jovens, crianças ainda, todas seviciadas periodicamente pelo homem sem peias, de um apetite insaciável.

Vó Jozina já era alforriada, vivia na fazenda por descuido do feitor. Habitava uma palhoça que o marido Dito Bengué havia construído para sua família: a mulher Jozina, a filha Clemência, o genro Coriano e a neta, Belmira. mocinha de quinze anos. Só ela era livre, já tinha mais de 90 anos, lembrava-se de coisas terríveis da escravidão.

Dito Bengué, o patriarca da pequena família, fora pessoa importante na Guiné, onde tinha sido preso e enviado para Salvador, como escravo. Vó Jozina era entendida em ervas, benzimentos e outros mistérios.

— Agora, até que não está tão ruim assim.— Dizia a avó. — A gente já passou por coisa pior.

Uma noite, chega a neta Belmira, que trabalhava na casa-grande, chorando, com dores, sangrando nas pernas. Havia sido estuprada pelo patrão, como fazia com todas as escravas jovens.

Foi um deus-nos-acuda. Na palhoça não havia nada senão trapos e uma gamela d’água para tratar da menina, que não compreendia sequer o que lhe havia acontecido. Clemência e Jozina, além de socorrerem Belmira, tiveram de apaziguar os ânimos do avô e do pai. Os dois queriam sair noite-a-dentro a fim de vingarem o mal-feito à menina.

— Deixa, gente, vamos esperá. — Vó Jozina impôs sua autoridade de matriarca. — Agora, com sangue quente, nada dá certo. Vamo cuidá da menina, depois a gene assunta o que fazê contra o mardito.

Belmira ficou prenhe em conseqüência da agressão do patrão. Enquanto a barriga crescia, Vó Jozina, conhecedora de muitas artes de mistério e magia, foi fazendo um “trabalho” a fim de vingar a neta. Fez um boneco tosco de sabugo e palhas de milho, amarradas com embira.

Três meses decorridos, numa noite de sexta-feira e lua cheia, ela reuniu toda a família no centro da palhoça, acendeu uma pequena fogueira e iniciou um ritual que só ela compreendia.

— Temos que estar todos juntos nesta macumba. — Explicou.

Sentados ao redor da fogueira, observavam Vó Jozina. Jogava ervas secas sobre o fogo, que se animava a cada punhado. Na cadência de um som cavo e profundo, começou a balançar a cabeça, depois o corpo, entrando num transe.

— Huummm-hum! Huummm-hum! Huummm-hum! O mardito vai morrê de morte violenta. — Vaticinou. E continuou:

— Huummm-hum! Huummm-hum! Huummm-hum! Vai ficá preto que nem tição apagado.

A cada maldição, aumentava o ritmo da cantilena e das mancheias de ervas sobre o fogo.

— Huummm-hum! Huummm-hum! Huummm-hum! Vai fedê mais que carniça.

Falava como se estivesse vendo a tragédia que anunciava.

— Huummm-hum! Huummm-hum! Huummm-hum! Vai sê cumido pelos bichos. Sua carniça vai ser pasto de urubus e os ossos vão esparramá em cima da terra.

— Huummm-hum! Huummm-hum! Huummm-hum! Nunca mais vai tê sussego, sua arma vai pená até o finar dos tempo.

— Huummm-hum! Huummm-hum! Huummm-hum! A fazenda vai morrê junto com ele.

Terminando o trabalho, jogou na fogueira o boneco de sabugo e palhas, que havia feito tempos atrás.

A maldição se cumpre. Um raio atinge uma velha peroba, sob a qual se resguardava o coronel, lá no alto dos buritis, numa tarde clara que, de repente, virou noite de tempestade. O corpo ficou mais preto do que os negros da senzala. Irreconhecível.

— Aquilo foi castigo. Ceis querem enterrar o maldito? Pois vão lá, experimenta. — Vó Jozina foi à senzala anunciando a tragédia.

O capataz reuniu três escravos e lá foram, pegar o que restara do capitão. Os urubus e outros bichos carniceiros já tinha devorado mais da metade, os ossos apareciam entre os farrapos de roupa.

Não conseguiram trazer nem enterrar o patrão. Parece que havia um demônio vigiando, ninguém conseguiu chegar perto. Lá ficou secando ao sol, as roupas apodrecendo e os ossos branqueando-se sobre o terreno.

A fazenda entrou em decadência. Nem o capataz quis ficar por ali. Os escravos debandaram, foram pro quilombo. só ficou a família de Dito Bengué.

Belmira, no devido tempo, pariu uma criaturinha disforme, fraca. A criança nem foi batizada e ficou sendo tratada por Fia.

O sol já ia baixando sobre o horizonte. Enquanto a história era narrada, fui tirando fotos e mais fotos. O ambiente escuro não facilitava, nem o flash iluminava bem o interior da tapera. O vulto que me contava a história se confundia cada vez mais com as sombras do casebre. A voz continuava.

— Fui crescendo e os velhos foram morrendo. Dito Bengué, a Vó Jozina, que eram meus bisavós. O tempo passou, morreram os avós Coriano e Belmira. Fiquei com minha mãe, que me chamava de Fia, porque eu não tinha nome. Minha mãe também se foi. Por fim, só restou este molambo que o senhor tá vendo.

— Pelo o que a senhora me contou, sua idade deve ser de muito mais de cem anos.

— O moço tá duvidando de mim?

— Não, mas fazendo as contas...

— Num tenho nem nome nem documento, nem nada. Mas aqui lhe entrego este patuá. Dentro tem a prova de que tou lhe dizendo a verdade.

Retira do pescoço um saquinho de couro que põe em minhas mãos. Sebento e escuro de sujeira. Sinto um certo receio de pegar.

— Aí dentro tá a prova. Leva com o senhor. Num preciso mais disso não. Já estou indo.

Sem me dar tempo para uma resposta, ela se enfiou pros fundos da tapera e sumiu.

Criando coragem, pois agora estava mesmo intrigado com a história, fui atrás dela – isto é, fui na direção onde a mulher havia se metido. Não encontrei. Já era o lusco-fusco que precede a noite. Andei pra lá e pra cá, ao redor da tapera, fui até além uns vinte ou trinta metros, e nada. Desvanecera-se. Sumira. Vasculhei a tapera e nada vi que pudesse dar indícios de que uma pessoa vivera ali. Onde não havia mato e galhos, o local estava coberto por limo e poeira.

O sol descambou e a noite desceu. De repente, fui tomado por uma inexplicável sensação de terror. Deixei apressado o casebre, refiz todo o caminho que me levara àquele local terrível e em poucos minutos cheguei onde Jeremias me esperava, sentado sobre uma pedra.

A volta foi quase em silêncio. O caminho, iluminado pela lua cheia, era marcado por sombras que minha imaginação transformavam em formas assombradas. Puxei conversa com o pequeno guia, a fim de distrair-me.

— Porque não derrubam de vez estas ruínas?

— Dizem que é impossível. Toda vez alguém tenta fazer qualquer coisa no casarão ou nas outras construções, as desgraças começam acontecer.

O garoto sabia de tudo, parecia falar a verdade.

— Desgraças, como? — Estimulei a conversa.

— Acidentes. Paredes desabam. O Juquinha Leréia morreu quando marretava uma parede. Sem falar na assombração.

— Assombração de quem?

— Nunca vi. Diz que é de uma preta veia que morreu aí faz tempo.

Não comentei com Jeremias nem com ninguém sobre minha “entrevista” com a velha da tapera. As fotos que tirei com minha câmara nada revelaram, pois, apesar de retratar o interior do barraco, nada registrou da mulher que me narrou a estranha história. Discretamente, interroguei o proprietário da pousada e alguns empregados, sobre as ruínas da velha fazenda. Ninguém quis estender a conversa.

— Num tem nada lá não, doutor. Só velharia. — Quem mais falou foi um serviçal que atendia na copa. — Nem é bom ir lá, pois tá tudo caindo aos pedaços.

O saquinho de couro era todo costurado, tinha alguma coisa dentro. Quando abri, descobri um disco de marfim, de uns dez centímetros de diâmetro, entalhado nos dois lados. Figuras de gente e animais, signos e ...escrita?

Para mim, era uma peça de ornato, um enfeite. Levei-o ao Museu de História, onde o diretor se interessou pelo objeto. Desejou saber onde havia conseguido e queria comprá-lo.

— Não estou vendendo. Quero apenas saber do que se trata.

Ele me explicou, sucintamente:

— É o sinal da realeza de uma importante tribo da Guiné, chamada Xalingo de Oboá. Esta tribo não existe mais, foi dizimada por ocasião do tráfico de negros para o Brasil. Todos os homens da tribo vieram para cá, trazidos em navios negreiros. Este disco por certo pertenceu ao último rei daquela tribo.

Agradeci e embrulhava o disco quando ele me fez uma última tentativa de saber mais.

— Daria muito para saber apenas onde o senhor conseguiu esta peça.

— Poderia até lhe contar. Mas como não tenho provas da minha história, corro o risco de passar por um grande mentiroso.

Coloquei o disco no bolso do paletó e saí.

Antônio Gobbo

Belo Horizonte, 8 de outubro de 2007

Conto # 454 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/10/2014
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