O espelho de Morfeu

Era a primeira noite que passava em minha nova casa. Minha primeira casa; agora sim podia me sentir adulta. Comprei um casarão antigo, já mobiliado, que precisará de inúmeros reparos e reformas, mas ao invés de desânimo pelo trabalho e dinheiro que isso custará, me sinto animada pela aventura.

Os móveis são todos muito antigos, mas muito bem conservados, todos os ambientes da casa são amplos e claros, a luz elétrica é de uma tonalidade alaranjada que confere um ar de aconchego e um toque mágico a tudo. Subo as escadas para o andar onde ficam os quartos, escolho um que me chama a atenção pela elegância superior aos outros cômodos da casa.

Observo a cama vitoriana com dossel e um véu muito branco preso nas laterais, não entendo como o véu pôde permanecer tão alvo, mesmo a casa tendo ficado tanto tempo fechada. O guarda roupas robusto, de madeira escura, não tinha nenhum atrativo a não ser o de me lembrar vagamente a passagem para Nárnia, abri suas portas inconscientemente esperando achar algo de mágico, mas foi em vão, para meu desapontamento o guarda roupas de meu novo quarto era muito comum.

A janela estava aberta e um leve vento balançou as cortina de renda, que refletiram em um antigo espelho quase escondido nas brumas da noite, curiosa, fui até lá e examinei cuidadosamente o espelho, era oval com moldura de bronze envelhecido, onde se viam figuras que deduzi se referirem ao deus grego Morfeu, imaginei que nada poderia haver em comum o deus do sono com um espelho, tentei achar alguma conexão, mas não consegui.

Troquei os lençóis da cama, o que mais gosto é a roupa de cama limpa, cheirosa e de preferencia feita de algodão egípcio, um pequeno luxo. Por hoje o quarto estava habitável, daria para dormir, amanhã bem cedo começaria uma faxina completa em minha nova residência.

Tranquei todas as janelas, apaguei todas as luzes e fui para meu quarto, a noite já ia bem adiantada, ainda tomei um bom e relaxante banho e fui me deitar. O sono logo chegou, eu estava exausta. Acordo no meio da noite sem entender o porquê, olho as horas em meu celular e vejo que ainda são quatro horas da manhã, estou sem sono, viro de um lado para outro em meus lençóis de algodão egípcio.

Uma coisa me chama a atenção, meu reflexo no espelho parece fantasmagórico. Olho fixamente. Cabelos soltos, compridos e levemente ondulados, rosto oval, muito pálido, olhos grandes e castanhos claros, boca miúda, bem contornada, muito vermelha, nariz pequeno, fino e levemente arrebitado. Minha camisola de cetim branca, sem mangas e um pouco abaixo dos joelhos, parecia brilhar. Parece haver algo diferente, não sei bem o que é, levanto da cama, ando em direção ao espelho, paro bem em frente, o reflexo parece envolvido em brumas, névoas.

Coloco a palma de minha mão sobre o espelho, sinto sua fria e resistente superfície, o calor de minha mão aquece o vidro e inexplicavelmente sinto minha mão afundando através do espelho, assustada, retiro depressa minha mão, “devo estar sonhando” penso, respiro profundamente e dou palmadas leves em meu rosto. Pareço bem acordada, olho as horas novamente e são quatro e cinco da manhã.

Não consigo conter a curiosidade, recoloco a mão no espelho e passando alguns segundos ela vai afundando novamente. Decido descobrir o que está acontecendo, mesmo suspeitando que minhas faculdades mentais pudessem estar abaladas, em apenas alguns segundos, muitas coisas passaram pela minha mente, como um filme, me imaginei sozinha e louca, tão jovem ainda, morando em um casarão, com meus nove gatos e falando sobre entrar em espelhos.

Meu braço já havia passado pelo espelho, fecho os olhos e atravesso o corpo todo de uma vez, abro os olhos devagar e para minha decepção estou novamente em meu quarto, igualzinho era antes, nada havia mudado. Quando já estava imaginando que a loucura, embora existente, era pouca, ouço um barulho na maçaneta do quarto, alguém está abrindo a porta do meu quarto, antes de deitar eu havia verificado cada canto, cada janela e cada porta, não havia ninguém e estava tudo trancado, era quase impossível que alguém houvesse entrado.

Prendo a respiração enquanto vejo a porta se abrindo e um jovem rapaz entrando, parecia estar de pijama, calça de moletom cinza e camiseta branca, estava descalço e seu cabelo escuro e muito liso estava em desalinho. Fiquei parada, sem ação, olhando interrogativamente para ele, que naturalmente, ainda segurando a maçaneta da porta me diz:

- Você é mais bonita pessoalmente do que vista através do espelho.

Olhei incredulamente para ele e disse:

- Como assim? Eu realmente passei através do espelho?

- Claro que passou.

- E onde estou então? Ainda se parece com meu quarto.

Sorrindo e andando até o meio do quarto, ele disse:

- Você está no Mundo dos Sonhos.

- Ah, então estou sonhando...

- Não, você está acordada, você está em outra dimensão. O Mundo dos Sonhos é uma dimensão real, onde todos vêm quando sonham.

- Mas você acabou de falar que eu não estou sonhando...

- E você não está. Você atravessou o portal, ou seja, o espelho de Morfeu, ele é um dos últimos portais para esta dimensão que ainda existem na terra.

Olho atentamente para ele e me pergunto se ele é real, se estou mesmo ficando louca ou se sem que eu soubesse, um estranho maluco conseguiu entrar na minha casa. Para tentar comprovar a realidade chego mais perto dele, e a medida que me aproximo posso vê-lo mais claramente. Sinto uma estranha sensação de já tê-lo visto antes, suas feições não me eram de todo estranhas. Seus olhos castanhos claros, cor de mel quase, tinham uma intensidade conhecida.

- Eu já te vi antes?

- Claro que já, você sonha comigo regularmente.

- Mas eu não te conheço. Como posso sonhar com você?

- Eu sou real, estou dormindo e sonhando agora, nós nos esbarramos aqui em sonho uma vez e depois disso foi fácil te achar. Mas fiquei muito surpreso de te ver em carne e osso aqui.

- Mas como você sabe de tudo isso e eu não?

- Se estivesse sonhando você também saberia.

- Assim como eu sonho que estou nadando mesmo na realidade não sabendo nadar?

- Isso mesmo! Eu sabia que você era muito esperta na vida real também.

- Podemos fazer o que quisermos aqui?

- Isso mesmo, não há limites para nossa imaginação e ação.

- E parece tão real...

- É real para você agora, lembra?

- É mesmo... E já que estou aqui, o que tem para fazer?

Ele me olhou sorrindo e pegou minha mão, me levou até a porta e antes de abri-la disse:

- A propósito, meu nome é ...

- João. Eu sei... me lembrei agora.

Ele sorriu um sorriso lindo e disse que tinha certeza que eu não me esqueceria dele. Atravessamos a porta do meu quarto e estávamos na beira de um lago.

- Onde estamos?

- Você falou em nadar e me induziu a sonhar com um lago. Lembre-se que você está no meu sonho.

- Se eu tivesse encontrado outra pessoa antes eu estaria no sonho dela? Posso andar por aí vagando entre os sonhos, entrando e saindo daqueles que mais gostar?

- Isso mesmo. Você aprende rápido.

Com um salto mortal de costas ele pula no lago e me chama para entrar na água. De jeito nenhum eu entraria em um lago. Parecia bem profundo e as águas eram turvas.

- Você pode fazer isso, está no mundo dos sonhos onde tudo pode acontecer. Venha!!

- Se eu morrer aqui o que acontece?

- Você não vai morrer.

- Mas se eu morrer?

- Você acorda.

- Você disse que eu não estou sonhando.

- Vamos, qual é. Você me entendeu. Você volta para casa.

Resolvi arriscar e pulei de uma vez. Senti a água gelada, fiquei submersa por um instante e por puro instinto, consegui voltar à superfície. Estava nadando.

Inacreditavelmente eu podia nadar. Aproveitei ao máximo a experiência e a sensação era maravilhosa. João ainda na água olhava para minhas peripécias e sorria, boiava calmamente, como se estivesse deitado em sua cama.

- Porque você fica aí boiando quando pode nadar de verdade?

- Por que eu sei nadar muito bem de verdade e nado sempre, aqui eu venho para ver as nuvens. Olha.

Acalmei-me e boiei como ele e quando os meus olhos se acostumaram com a claridade do céu pude ver as nuvens de João. Eram sensacionais, rosa e douradas de todos os tamanhos e formas, nunca havia visto nuvens como aquelas. Uma sensação de paz interior tomou conta de mim, poderia ficar ali para sempre.

- O que acha de chegar mais perto delas?

- Como assim? Voando?

- Mais ou menos. – Ele deu um meio sorriso que aguçou minha curiosidade.

Quando eu menos esperava, estava dentro de um grande e espaçoso balão, multicolorido. João aumentava o fogo e nos fazia subir.

- Como viemos parar aqui?

- Como em todos os sonhos.

- Entendi.

A paisagem era indescritível, coisa de sonho mesmo, imensos campos cultivados com flores de todas as cores e formatos, todas alinhadas perfeitamente. Um céu azul cheio das nuvens de João e um horizonte cheio de árvores, algumas casinhas ao longe e até uma cachoeira ia diminuindo conforme íamos subindo.

- Ainda bem que você hoje está tendo sonhos maravilhosos. Não queria estar em um pesadelo.

- Nunca tenho um pesadelo quando você aparece. Você sempre traz os melhores sonhos possíveis.

- Nós nos conhecemos pessoalmente? Não, né. Tenho certeza que me lembraria.

- Não. Só por um acaso esbarramos um no sonho do outro uma vez e depois disso acabamos sempre sonhando juntos. Hoje você está realmente aqui. Ainda não acredito direito.

Era muito estranho estar olhando para um desconhecido e ainda assim acha-lo tão familiar, minha mente sabia que não o conhecia, mas minha alma parecia conhecê-lo muito bem, meus sentimentos conheciam-no. Claro que nas circunstâncias atuais, minha mente estava confusa e incrédula e meus sentimentos apesar de abalados pareciam crentes. Minha vontade de voltar para a realidade ia diminuindo a cada instante e não me importava mais em estar louca, se o panorama e a sensação fossem esses sempre, ficaria feliz em estar louca mesmo.

Um vento forte balançou o balão, me arrancando de meus pensamentos inquisidores.

- O que aconteceu?

- Acho que estou acordando...

- Não me deixe aqui sozinha, como faço pra voltar pra casa?

De repente estávamos novamente em meu quarto.

- Como você sabe quando está prestes a acordar?

- O sonho vai perdendo a sua força, não parece mais tão real. Você sabe como voltar agora. Nos vemos novamente no próximo sonho.

Mal ele acabava de falar e foi desaparecendo aos poucos, como se fosse perdendo consistência até desaparecer completamente. Olhei ao redor de meu quarto e tudo parecia igual. Fui até o espelho de Morfeu, toquei sua moldura de bronze, estava gelada. Afundei novamente minha mão pela superfície do espelho e logo estava em meu quarto, na realidade.

Sentia-me igual, não havia diferença alguma, pelo menos em mim mesma. Fui até minha cama, deitei, olhei as horas no celular e já eram dez para as seis da manhã. Muito cedo ainda, e eu nem tinha dormido. Assim que meu corpo relaxou, adormeci profundamente em um sono sem sonhos.

O alarme do meu despertador me acorda às oito horas da manhã, abro os olhos ainda sonolenta e a primeira coisa que me vem a mente é João e o sonho que tive. Será que foi tudo real mesmo? De súbito me levanto e corro até o espelho, coloco minha mão sobre ele e espero. Nada acontece. Fico desapontada por um momento, mas logo minha mente formula muitas explicações. Pode funcionar só de noite. Foi a melhor explicação que achei então me contentei com ela.

Vesti-me rapidamente com roupas leves e confortáveis, próprias para uma grande faxina. Amarrei um lenço vermelho na cabeça e deixei os cabelos soltos, fiquei parecendo uma roqueira dos anos oitenta. Primeiro abri todas as janelas do casarão, amo a claridade do sol entrando por toda a casa, depois fui preparar o café da manhã. Fiz um café forte e quase sem açúcar com leite bem quente e como não queria sair de casa antes da faxina para ir à padaria, comi um pão amanhecido que ainda estava bom, com manteiga. Melhor desjejum não poderia existir.

Depois do café comecei a faxina a todo vapor, não imaginei que fosse tão difícil, a casa estava fechada há muito tempo e a sujeira se acumulou por anos e anos, começo a achar que precisarei de uma ajuda especializada. Desisto de tentar limpar tudo sozinha e ligo para minha mãe, que tem o número de todas as agencias especializadas em limpeza do estado. Ela tenta me persuadir novamente a deixar esta loucura de morar sozinha em outra cidade e que devo reconsiderar o recente fim de meu noivado.

Minha mãe nunca entendeu o que se passou comigo naquela noite, quando sem razões aparentes rompi meu compromisso às vésperas do casamento. Na verdade, nem eu mesma conseguia entender o que me havia motivado a tão drásticas mudanças. Lembro-me perfeitamente de estar olhando para Júlio, meu namorado desde a infância e simplesmente não suportava imaginar que minha vida estava se preestabelecendo para sempre. Era a vida que tinham preparado pra mim e não que eu havia alcançado ou buscado. Eu queria viver por mim mesma, ser eu mesma.

Acabei conseguindo o contato de uma agencia de limpeza aqui na cidade e contratei-os para o trabalho, não via a hora de ver minha casa limpa e organizada. Começariam no dia seguinte e eu não queria adiantar o trabalho deles, então resolvi dar uma volta pela cidade e conhecer os arredores.

Continua...

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 24/10/2014
Código do texto: T5010675
Classificação de conteúdo: seguro