Daquele em que se sucedeu uma inusitada travessia

Aquele barqueiro já fizera inúmeras travessias durante todo esse tempo, assassinos, advogados, todo tipo de gente ruim que possa-se imaginar. Naquele dia, tudo seguia na mais perfeita normalidade, ele fumava um daqueles cubanos quando um homem surgiu e logo indagou com rispidez:

- É você que faz a travessia?

- Sim sou eu.

- Então vamos partir logo, tenho urgência nisso.

- Urgência? O senhor por um acaso sabe aonde é que essa barca irá levá-lo?

- Sei sim, e peço que não demores e que faça o teu serviço logo.

O barqueiro achando aquilo tudo muito estranho tratou de iniciar a travessia. O sujeito era um senhor com uns quarenta anos, era gordo, branquelo, trajava roupas sociais mas totalmente desalinhado, estava nitidamente nervoso e esfregava uma mão na outra compulsivamente, até que resolveu abrir a boca de novo:

- Quanto tempo até chegarmos do outro lado?

- Uma hora.

- Uma hora? Não pode ir mais rápido?

- Lamento senhor...

- Astolfo, me chamo Astolfo de Alcântara e você?

- Já não me lembro, estou aqui faz tanto tempo que já não lembro meu nome e nem quem eu era. E a propósito como foi que o senhor desencarnou?

- Como eu o quê?

- Desencarnou.

- Como assim desencarnou?

- Eu quero saber como foi que o senhor morreu?

- E quem disse que eu morri?

- O QUÊ? O senhor está vivo?

- Completamente vivo e gozando de plena saúde, exceto por uns problemas estomacais, pressão alta e uma hérnia para a qual já marquei uma cirurgia para semana que vem.

O pobre barqueiro simplesmente não podia acreditar no que estava ouvindo, havia um homem vivo no inferno e com pressa em chegar.

- Espera aí, o senhor sabe para onde essa barca está indo?

- Mas é claro que sei!

- Mas então...

- Ouça aqui, estou indo justamente para onde preciso ir. Preciso ver o seu chefe.

- O meu chefe?

- É, o Diabo, Capeta, Belzebu...

- Você quer ver o Senhor Lúcifer?

- Exato!

- E o senhor acha que é simples assim, "Ah, vou descer ao inferno para prosear com Lúcifer"

- Prosear é o cacete! Não vim aqui prosear, tenho mais o que fazer. Vim aqui cobrar uma dívida.

- Então ele está lhe devendo?

- Está sim, fiz um acordo com aquele filho da puta e ele me enganou.

O barqueiro entendia cada vez menos tudo aquilo e quando se deu por si, já tinha concluído a travessia e o tal Astolfo já tinha pulado da barca e seguido o seu rumo. O barqueiro então sentou atordoado com tudo aquilo acendeu um cubano e pensou:

- Porra, tem um cara vivo aqui no inferno e simplesmente não existe um protocolo pra isso!

Tim Soares
Enviado por Tim Soares em 25/02/2015
Reeditado em 08/05/2023
Código do texto: T5149609
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