A Face de um Rosto

Bate palminha bate. Lembra? Um refrão e uma boneca. De carne, osso e neblina. Bate palminha bate. Uma noite nebulosa sob temporal iminente. Festa de dia das bruxas no cemitério da cidade. Cada qual dos presentes mais morto que o outro. Alguns mortos pareciam bem reais. Bate palminha bate. Comecei a ouvi-la. Uma música. Quase um uivo. Sentia um cheiro diferente. Uma mistura de cheiros misturados em um só. Forte e excitante. Um trovão. E a música parou com o cemitério vazio.

O tempo pareceu dar tempo a ele próprio. As lápides na terra. A grama irregular, igual aos meus passos, em direção ao cheiro, que vinha dali, do Campo-santo. Sobre um túmulo, manchada de sangue, jaz uma boneca. Daí o cheiro. Uma rajada de vento voa por mim. E os raios. Árvores sem folhas pareciam ter vida. Atrás delas, uma mulher de vestido transparente e um capuz tapando sua cabeça e rosto. Acham que tudo não passou de delírio meu. Basta me olhar. Nuvens carregadas pairam no céu. O silêncio era ensurdecedor.

Em meio à neblina ela surgiu. Me envolveu num abraço. A morte a me abraçar? Uma morta-viva? A resposta veio ao ouvir sua voz, que me sussurrou ao ouvido: “De onde venho o fator tempo não existe. E aqueles que nunca dormem precisam se manter ocupados. E eu quero me ocupar de você. Quero fazer de você meu boneco, meu objeto, meu brinquedo”. Seu corpo frio junto ao meu, suas unhas cravando na minha carne. Um grito sem voz saiu da minha boca. Não sentia meu corpo. Ao tentar fugir ela me domina e usa meu corpo.

Sem forças para reagir, tamanho era meu pavor, o que me manteve de olhos fechados. Ao abri-los, o que vi foi um corpo sem rosto. Uma névoa debaixo do capuz. Nada era dito nem ouvido, apenas o silêncio. Ela tira o capuz e a névoa se desfaz, assim como a neblina. E chove Uma face começa a tomar forma. Um rosto familiar, porém estranho. Escuto de novo a música, como um sussurro que foi crescendo em meus ouvidos. Bate palminha bate. Foi quando caí desacordado.

Acordei de dia, molhado e deitado no barro, próximo a um túmulo, meu pescoço doía e não havia mais sangue. Ao olhar em volta, uma boneca pendurada numa árvore, como se tivesse sido enforcada. Seus braços e mãos faziam um movimento como se estivesse batendo palmas. Não via sua cara, devido à distância. Fui até lá. Algo diferente nela. A cabeça maior que o corpo. Um não fazia parte do outro. Ao virá-la para mim não pude conter o grito, desta vez alto.

Era o meu rosto que estava ali.

Rodrigo Barcellos
Enviado por Rodrigo Barcellos em 31/03/2015
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