Eu mesmo e a conversa
Era manhã de sábado. O sol, que ainda não espalhava os seus raios
impetuosos de calor, dava estímulo para os andarilhos que seguiam sua rotina
diária, até mesmo para aqueles que trabalham e não utilizam meios de transporte
para se locomover.
Eu voltava de uma caminhada, (medida na qual tomo para não cair no
sedentarismo) ainda em rejúbilo por causa da última conversa que tive com meus
amigos. No percurso, quando passava ao lado da pracinha, deparei-me com um
velho que estava sentado num banco de madeira, como qualquer outro, o jornal em
mãos na maneira mais ritualística possível. O que me deixou curioso foi o seguinte
fato: ele lia o que estava escrito um pouco alto e de forma ditosa, parece que o
mesmo se dirigia ao garotinho que estava sentado do seu lado brincando de ioiô.
Reparei que o menino não dava a mínima atenção para aquele senhor. Olhei bem
para ambos e logo resolvi continuar andando.
- Jovem! Oh jovem!
Ouvi uma voz a minhas costas. Percebi instantaneamente que o velho me
chamava, pensei em não lhe dar atenção ou fingir não ter escutado, mas pelo
contrário, virei-me em sua direção e perguntei:
- Pois não, senhor?
Ele indagou:
- Oh, jovem, não sei se é pedir muito, mas você poderia me fazer companhia
nesta calma manhã ensolarada? Se for incômodo para ti pode seguir seu caminho!
O garotinho tinha ido embora, logo percebi que teria que permanecer
escutando aquela forma quase que robótica lendo ao meu lado.
Eu olhava para aquele ancião e algo nele me causava uma sensação
estranha, poderia muito bem dizer que tinha outras coisas para fazer e não poderia
ficar.
- Ah, acho que sou eu quem irá incomodá-lo, senhor! - esbocei um leve
sorriso amigável.- M-mas, mas fui eu quem o chamou, não precisa se preocupar. Vamos,
recoste-se aí no banco, não demonstre pudor por minha causa, sou um velho
caquético e não uma mulher vulgar.
Dei uma gargalhada e me sentei no banco (que era desconfortável pra
caramba por sinal).
O senil ia folheando o jornal, vez ou outra passava um tempão vidrado numa
página, às vezes algumas caíam e eu ajudava a apanhá-las. Além disso, eu fazia
alguns movimentos no banco para aliviar a dormência no traseiro, a tala de madeira
do banco já bem desgastada era um sofrimento. Notei que ele havia parado de ler
de forma recitativa e optou pelo silêncio. Foi nesse momento, ao terminar meu
raciocínio, que ele se dirigiu para mim.
- Qual o seu nome jovem?
- Ah, é Thiago, senhor!
- Hum... Thiago, muito bem, nome bíblico, né?
Nessa hora eu me distraí um pouco, porém, cheguei a ouvir o que ele havia
indagado. Dei um suspiro forte, fui baixando lentamente a minha cabeça e focalizei o
chão, o concreto sujo, coberto de manchas escuras. Quem esquece somos nós, as
marcas de sapato denunciavam todos àqueles que pisotearam as sementes daquele
nostálgico benjamim. Um sorriso se formava novamente em meu rosto, lentamente,
o esboçar dos meus lábios traziam à tona o limiar dos dentes. Inclinando o pescoço,
observei atentamente o céu, qualquer habitante celículo fazia suas juras
permanentes. Aquele azul difuso poderia fazer qualquer um se perder em adjetivos
na tentativa de contemplá-lo, a lassidão incorporaria e o sono lhe levaria a uma
viagem, para o mais profundo desconhecido. Fechei os olhos, uma forte ventania
passou, entre as minhas orelhas senti o embaraçar dos cabelos, reabri as pálpebras
e lancei o olhar para o velho.
- Bem, se não me engano foi minha mãe que escolheu esse nome, gosto
muito dele... Mamãe é uma pessoa bastante religiosa.
- Ah, eu sabia, muito bem, já perdi a conta das pessoas que conheci e
tinham este nome, é muito bonito.
- É bem comum mesmo! - respondi prontamente.
- Sabe, você parece com alguém que eu conheço, mas não tenho certeza.
O velho proferiu aquilo meio entusiasmado, fiquei um pouco assustado e não
sei por que, até senti o corpo gelar um pouco. Eu não queria inundá-lo no vácuo,
então repliquei:- Existem muitas pessoas parecidas por aí, o senhor deve ter apenas se
lembrado de alguém com a minha aparência!
- Bem, é verdade, e a idade não me proporciona mais dádivas só perdas! -
resmungou um pouco meio ressentido.
- Como já dizia alguém: “alegria de velho é lembrar-se das coisas que fazia
quando era novo”.
Observei que um ar de amargura se apossava daquele homem, ele retirou
os óculos e esfregou as mãos nos olhos. A impressão que eu tinha era que o velho
iria se aljôfar em lágrimas. Não estava a fim de consolá-lo, eu era mais novo, ele
quem deveria saber se portar. Logo em seguida, um estalar de língua me chamou a
atenção, aquele indivíduo, sem mais nem menos, pôs as mãos enrugadas nas
pernas e soltou uma risada teatral. Os passarinhos que beliscavam as sementes no
chão espantaram-se e levantaram voo. O semblante zombeteiro ampliava ainda
mais as marcas que dominavam a idade do pobre. Os olhos arregalados e
amarelados davam lugar ao desfile de um nariz meio chato com um bigode branco,
que se unia ao sorriso de dentes alvos e bem conservados. Vi que ele meteu a mão
no bolso da calça e tirou um lenço no qual utilizou para limpar os óculos. Fazia umas
caretas fechando apenas um dos olhos, que nem um caçador quando está mirando
no seu alvo. Daí ele virou em minha direção e redarguiu:
- Eu sempre faço isso, não se preocupe, finjo fazer drama porque sei que as
pessoas se comovem e tentam fazer algo para me acalmar, entretanto, antes delas
fazerem isso, “tcharam”, veem que tudo não passava de uma encenação.
Que cara mais esquisito, pensei.
- Eu sabia que você iria apoiar as duas mãos nos meus braços e colocaria a
minha cabeça próxima do seu peito dizendo “palavras de força”!
Com um olhar sério e desafiador deixei bem claro a minha sincera opinião:
- Não, senhor, eu já ia me retirar de mansinho sem você perceber, não sou
bom em consolar as pessoas!
De repente, a expressão do velho se alterou, cada músculo da face que
havia se agrupado para o pleno gozo de anteriormente, voltou para o seu devido
lugar. Estava sério.
- Entendo sua sinceridade, apesar de não aceitar muito ela.
- Desculpe-me... Senhor... Não pretendia... Ofendê-lo! - o arrependimento
embargou um pouco minha voz.
- Não há problema algum jovem Thiago, quando tinha mais ou menos sua
idade eu também era assim. As respostas que eu dava sempre pareciam cabíveispara as situações e que de imediato pareciam perfeitas, elas precisavam ser.
Quando estava em casa o momento de dormir parecia minha ruína, colocava a
cabeça no travesseiro e os pensamentos fluíam de outra forma. As reflexões me
deixavam ainda mais acorrentado à dubiedade. Tudo que eu fazia durante o dia, em
meu raciocínio poderia ter acontecido de outra maneira, ou melhor, as questões
impostas a mim poderiam ter tido respostas mais conclusivas, flexíveis ou até “mais
perfeitas”.
O modo como ele gesticulava era um pouco familiar, eu prestava atenção a
tudo que ele dizia, nem me lembro de ter desviado o olhar. Parecia que naquele
instante só havia nós dois nesse lugar, ou melhor, no mundo. Nada ao redor poderia
me distrair, pois, o que estava sendo abordado no diálogo, tinha muito a ver comigo,
mesmo sendo de uma pessoa que eu não conhecia.
- Senhor, atentou-me sobre o que estava falando e me identifiquei um
pouco.
O velho passou a mão nos cabelos grisalhos, assanhando-os um pouco,
despertou um sorriso compreensivo e disse:
- Não há novidade no que dizes jovem Thiago, todos aqueles que por aqui
passaram já o disseram.
- Mas, mas é a pura verdade senhor!
O olhar dele exalava serenidade com um teor investigativo.
- Hum... Acho que não há razão para duvidar de você, mesmo não o
conhecendo sinto que...
- Oh, por favor, não comece senhor! - retruquei.
- Claro, sem problemas!
- Fico bastante grato!
- Jovem Thiago, você alguma vez já presenciou uma situação em que você
poderia mudá-la, mas, por algum motivo, não fizestes isso?
- Sim! - afirmei acenando um pouco a cabeça.
- E que, depois de um tempo, você contou essa mesma situação para
alguém complementando com a parte que queria ter acontecido? Ou seja, mentiu
sobre esse detalhe?
Parece que o velho conseguia ver o que se passava em minha mente.
- Sim, e não foi só uma vez!
O senil comprimiu os lábios, deslizando a ponta da língua sobre eles.- Você se arrepende de ter feito isso?
Dei um sorriso amargo, encolhendo um pouco o lado esquerdo da boca,
passei a mão direita abaixo do queixo que foi subindo, e, com os dedos, esfregava
as maçãs do rosto. Com o polegar, eu massageava a barba rala, e com o indicador,
afastava os cabelos que desciam nos olhos.
- Olha, eu sempre prometo para mim mesmo que vou parar. Sei lá, parece
meio automático, às vezes eu tento evitar, mas aí quando me dou conta já
aconteceu. É uma droga!
- Seja paciente Jovem Thiago, até mesmo eu já fui assim, exatamente como
você contou, mas eu consegui mudar, hoje em dia é como ter uma liberdade
adquirida.
- A liberdade não existe senhor, a morte nos priva dela!
- Quem te falou isso? - um exalar curioso deixou-o entregue.
- O tempo, ele diz para todos que passa, pois tudo que é vivo morre sem
nem mesmo poder escolher!
- Que visão mais limitada! Acha mesmo que vida e morte fazem parte de um
mesmo plano? A relação pode ser bastante intrínseca, mas na verdade são duas
realidades diferentes. Enquanto vivo, o ser humano tem suas escolhas, a morte é
apenas o fim do ciclo. Isso não quer dizer que a liberdade foi privada, ela existiu,
mas somente naquele plano. A morte te trará um novo plano que nós, enquanto
vivos, ainda desconhecemos!
- Err... O tempo, ele nos faz envelhecer, eu não posso escolher continuar
jovem para sempre?
Um reflexo de toda a sinceridade se desfez nas palavras daquele para qual
indaguei.
- O tempo não existe meu caro, nós é que o fazemos para nos sentirmos
orientados. Você alguma vez já viu a definição de um verdadeiro começo ou um
verdadeiro final? Não, porque os fatos simplesmente acontecem e apenas
nomeamos aquilo que começa e o que termina, ou seja, nós ESCOLHEMOS!
- Nunca tinha visto por esse lado senhor e... Nossa, está tarde, tenho que
voltar para casa, minha mãe já deve estar preocupada, pois disse a ela que voltaria
cedo!
- Oh, sem problemas, agradeço muito por ter concedido a sua presença, a
conversa foi bastante agradável.- Eu que agradeço do fundo de minha alma senhor, não sabe o quão
valiosas foram suas palavras e como elas irão me influenciar a partir de agora, bem,
já vou indo, até mais!
- Oh, espere um instante!
O velho tirou do bolso um papel e uma caneta, escreveu alguma coisa nele,
em seguida, dobrou-o e entregou para mim.
- Vá em paz Jovem Thiago!
Demos um grande aperto de mão e uma tapinha nas costas, parecíamos
meio que amigos.
- Espero encontrá-lo em outra ocasião senhor!
- Você sempre irá me ver.
- Adeus!
Levantei às pressas do banco, comecei a andar tão rápido, quase correndo.
Dei uma única olhada para trás e o velho continuava lá, sentado de pernas
cruzadas, uma aura de ubiquidade pairava sobre ele, enquanto lia seu indestrutível
jornal.
A pressa se tornou ainda mais voraz, parece que chegar à minha casa tinha
se transformado numa meta e eu tinha que cumpri-la, não poderia falhar. Foi nesse
momento que lembrei que tinha me esquecido de perguntar o nome do velho.
Nossa, eu tinha de saber o nome dele; pensei em voltar, entretanto, já era
demasiado tarde e não poderia demorar mais. Passei a mão em um dos bolsos da
bermuda e vi que tinha guardado o papel que ele me deu. Desamassei-o
rapidamente (eu arfava um pouco devido à trajetória), e assim estava escrito: “Foi
muito bom, conheci a mim mesmo ainda jovem”. Larguei o papel das mãos, fiz uma
cara tão pavorosa que nem posso imaginar, dei uns passos trêmulos para trás, sem
ainda acreditar naquilo que tinha visto. Passei um instante cabisbaixo, de repente,
senti novamente a brisa passar por mim, dessa vez era mais forte. Peguei
novamente o papel, reli e guardei-o. Tinha erguido a cabeça, logo voltei a caminhar,
mas, por algum motivo desconhecido, senti uma imensa vontade de correr, dessa
vez era para valer. O sorriso ia se estampando no rosto, na disparada, comecei a
gritar feito um maluco pelas ruas, gargalhando sem razão, não posso descrever com
palavras o que sentia, apenas sabia que alguém estava a minha espera e que nada
neste mundo poderia me impedir. Eu iria chegar lá.