Clone

Temos costumes culturais que nos parecem certos simplesmente porque nascemos quando eles já estavam sendo cultuados. Lembro-me bem quando era criança dos costumes de nossa família e vizinhos. Nas vésperas do natal o peru , o cordeiro e patos e frangos ficavam amarrados no quintal da minha avó. Eram trazidos dos sítios vizinhos, por parentes de minha mãe que vinham todos os anos para as festas de natal e ano novo. O cordeiros eram fofos, a meu ver, e ficavam lá pendurados por suas perninhas berrando. Meus tios, meu avô e até meu bondoso pai, afiavam uma faca e cortávam-lhe a garganta sem dó. Depois era temperado com alho, sal e ervas e assado em fornos a lenha, que eram improvisados no quintal, assim como o peru os patos e os frangos.

Sob uma lona armada no quintal em forma de barraca, era colocada uma enorme mesa de madeira, com todas as cadeiras disponíveis. Sobre a mesa espalhavam-se os risotos, saladas, massas, bolos, tortas, pudins frutas e castanhas. As carnes chegavam em bandejas fumegantes enfeitados com farofa e abacaxi. Ninguém questionava a vida dos animais.

Hoje em dia depois de muitos anos, olhando para a cena através da bruma do tempo, me pego a me imaginar fazendo tal atrocidade. Não conseguiria jamais abater um bicho, em hipótese alguma. Mas quando vou ao mercado encontro as carnes embaladas, cortadas separadas da vida e dos corpos, e isso me dá a sensação de que são apenas alimento.

Talvez fosse essa forma de adaptar-se aos costumes que a me fizera ficar tanto tempo anestesiada vendo aquela cena cotidiana e normal naquele mundo em que de repente me vi.

Demorou alguns minutos para que eu percebesse, fiquei parada olhando, tentando me acostumar com a cena, que agora me perturbava. Sim só agora me dera conta do absurdo da situação. Como pude ser tão insensível. Tudo bem a festa rolava solta havia dias. Todos estavam felizes, se divertindo, bebericando drinques coloridos, ouvindo a musica tocar ao fundo. Haviam espalhado mesas com finas toalhas brancas sob as frondosas árvores floridas. Eu estava bem de frente da caixa, que parecia um aquário de vidro. Continha um líquido viscoso e transparente; dentro o prato principal da festa era temperado com uma solução de sal e água. A solução salina era injetada por um tubo longo e estreito com uma seringa tipo essas de injetar medicamentos. Essa iguaria seria depois assada em forno quente e graças a sua tenra idade, pele fina e carne macia era apreciada pelas pessoas que estavam na festa e quem sabe até por mim. Me perguntaria depois se já havia comido aquilo, mas agora o espanto e a necessidade de ação não permitia –me parar para pensar. Sabia que assim que tomasse a atitude que tencionava tomar eu me tornaria fugitiva e seria perseguida. Não tinha ideia de para onde correr ou quanto tempo demoraria para ser descoberta. Mas minha recém adquirida consciência não permitiria que aquilo continuasse.

Dentro do aquário de vidro, um ser se desenvolvia, suas perninhas rechonchudas e suas mãozinhas pequenas eram inconfundíveis. Tratava-se de um bebe humano em formação. Teria sido criado em laboratório? Sim com certeza. Era um ser criado em laboratório. . .

Percebi alarmada que o bebe chorava de dor ao receber a solução salina em sua pele. E talvez tenha sido esse choro que só agora eu ouvia, que me fizera correr até a caixa de vidro, enfiar a mão na solução viscosa e tomar o bebe nos braços e correr até a estação de trem próxima da casa onde acontecia a festa.

Eu não sabia o que fazer, não sabia se aquela sensação de que aquilo era um bebe humano e não uma iguaria culinária, perduraria muito mais, ou se eu voltaria a apatia que os costumes enraizados nos provoca diante das atrocidades cometidas contra outros seres vivos.

Parei na lanchonete para alimentar o bebe, sentei-me no banco esperando ser atendida. Foi quando me dei conta de que o bebe crescera. Ele não era um ser humano normal. Seu crescimento era mais rápido e estava parecido com uma criança de cinco anos. Sua pele enrugada pela queimadura salina havia se tornado limpa e rosada. Apenas em alguns pontos de seu rosto e pescoço era visível uma ou outra cicatriz. Possuía agora um rostinho saudável e curioso e olhava para mim com admiração inquisitória:

_Quem é você? _O que faz aqui? _E quem sou eu?

Eu não saberia responder mesmo que quisesse. Não pertencia aquele lugar, tanto quanto ele.

Nosso futuro era incerto. Mas por agora bastava o fato de que ele estava vivo, e a salvo.

Rosahoney
Enviado por Rosahoney em 08/08/2015
Reeditado em 08/08/2015
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