Noite de lua nova.

Eram lá pela vinte e duas horas, nesse dia havia trocado de turno, pois precisaram, como sempre precisam, e sempre fazem suplicas e mais suplicas, até que troque os horários, tudo bem, não faz mal, uma vez, ou, outra, era bom dormir até mais tarde, um pequeno prazer mortal.

O bom essas horas é o retrato que encontro do meu bairro, um sossego inimaginável, as avenidas e ruas, abertas e limpas, poucas pessoas perambulando, todas de péssima índole, mas, geralmente estão tão chapadas e bêbadas, que se tornam mais almas dignas de pena... Gosto dessa calmaria, dentro de uma periferia de péssima fama, é quase uma utopia e sei muito bem, como desfrutar disso tudo e como fazer de conta, que sou parte dessa paisagem depressiva.

Nesse dia em questão, quiseram extrapolar essa calmaria, pois, virando a ultima curva, para o meu ponto, todo aquele lado estava trevoso, sem luz alguma, nem nas casas, nem nos postes, só via alguns pequenos pontos, parecendo vaga-lumes, planando meio sem direção no nada, na verdade, eram pessoas tentando iluminar o máximo que podiam, com as luzes de seus celulares; dizem que nesses horários ocorrem muitos furtos e assaltos por aqui, mas também, como o pessoal ajudando assim, fica fácil entender... Um aparelho daqueles e o sujeito consegue drogas o suficiente, para pensar que está saindo da orbita terrestre.

Tudo inútil, tudo inútil, mesmo com aparelhos celulares na potência máxima de seu brilho, não se enxergava um palmo na frente, não tinha o menor rastro de sombras, ou, a menor movimentação de vultos, todo escuro, mesmo sendo um lugar onde sempre morei, nesse mar ébano não parecia ter a menor semelhança, nem um ponto de referência em lugar algum; saltar do ônibus e olhar para frente, sem se ter certeza de que é a frente, que você deseja, é um tanto agoniante, você fica literalmente desnorteado. E para finalizar a obra, estamos numa linda noite de lua nova, e com o céu já negro, ainda temos um mento de nuvens, que deixa tudo, num tom mais opaco, num aspecto rançoso, mas, teria que ir para casa de qualquer forma.

Sou um tanto desconfiado de tudo e de todos, sempre fico preocupado com as minhas constas e ainda mais nessa escuridão, numa noite tão inexpressiva, só pude recorrer a um grande amigo meu, que sempre me ajuda, está sempre comigo, não importa onde ou como, o tipo de amigo, com quem sempre posso contar, meu amado soco-inglês, ah sim; deveriam ver ele, cromado, material exemplar, diria ser o único brilho, que eu via naquele momento. Sem mais delongas, encaixei ele nos dedos e cerrando o punho, escondi no bolso do meu agasalho, a cada ponto percorrido, apertava mais e mais o punho fechado, a fim de desviar o stress, que devo dizer, é outro fiel amigo de minha pessoa.

Perdi as contas de quantos vultos passaram diante de mim, à minha esquerda, à minha direita, nas minhas costas, todos os meus pontos se tornaram pontos cegos, sem contar os sussurros dos que andavam em dupla ou trio, andavam dando uma de gostosões , porcaria nenhuma, apenas tinham medo de sair sozinho no escuro, conheço muito desses franguinhos, pagam de malandros, como se tivessem sido criados na rua... Meu hamster na gaiola, é mais malandrão do que esses caras sempre acabam dando um sorriso, de canto de boca, realmente menosprezando eles.

Creio que a situação em que se encontrava, fazia com que todos os pontos nervosos do corpo, se agitassem mais. Aquela velha situação, dos olhos se acostumarem com o escuro, podendo de certo, enxergar tudo em volta, cada milímetro, cada detalhe... Sinto pensar com meus botões, que dessa vez não está funcionando, não enxergo nada, me sinto cego, sem qualquer forma de visão, afinal, não poderia sair tateando todo mundo, isso seria muito estranho e me daria mais dores de cabeça. A essa altura do campeonato, só quero a minha casa.

Sigo os tapetes do asfalto, no caminho de casa, me aproximando, respirando fundo a cada esquina que dobro, cachorros na rua latindo, árvores tocam-me os ombros, parecendo mãos esguias me puxando, sem olhar para ver o que seja, simplesmente puxo meu braço, meu ombro, meu corpo todo para frente, não me atreveria a olhar para trás. Apenas seguia em frente, até finalmente sentir o declínio da minha rua, era só descida. Espero que todos os santos me ajudem, pois estou já no final, na minha meta.

Chego na porta da minha casa, na verdade, chego na entrada da minha viela, pois minha casa fica no final. Pelos céus, esse lugarzinho já é escuro por natureza, sem luz então... O jeito vai ser, tateando as paredes para não me confundir, nesse tatear, acabo ralando as costas da minha mão; paredes simples, sem reboco, apenas um chapisco de cimento e bem mal feito, escada longa e de degraus irregulares... Só para cooperar com a tortura física e mental, porém uma tortura passiva.

Já finalmente, chegando a minha porta, sinto um alivio sem palavras, sinto como se após esse leve stress, fosse levado a um orgasmo cerebral, com uma voz em minha cabeça ecoando, "já acabou!". Achei que não seria mais possível, que aquele fim de noite guardasse qualquer surpresa relevante depois de tudo.

Mas, me enganei miseravelmente; ao girar lentamente a maçaneta da porta, fiquei pasmo ao ver a luz ligada, o motor da geladeira em pleno funcionamento, televisão ligada, computador, imagens e sons, num impulso brusco logo questionei, "a energia, já voltou?", e fio obrigado a ouvir, a resposta calma, serena e com um tom de deboche de minha mãe, "e quando foi que a energia acabou?", resolvi olhar pela janela e toda a rua em volta e as casas e puxadinhos e até mesmo, as entradas das vielas, estavam iluminadas, parecia tudo acordado de novo.

Com uma pesada sensação de que estava alucinando tudo aquilo, eu me virei para minha mãe e disse, "tive a impressão, de que a rua de cima estava sem luz, devo ter sido levado, por essa noite de lua nova.". Larguei meu corpo pesadamente no sofá e me debrucei sobre um monte de roupas, esperando para serem passadas, pedi uma xícara de café para minha mãe e por fim, resolvi deixar estar, afinal, era só uma noite de lua nova.

Henrique Sanvas
Enviado por Henrique Sanvas em 16/08/2015
Reeditado em 22/09/2020
Código do texto: T5348044
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