A ÁRVORE

Não sei muito bem como foi isso, mas um dia eu acordei e era uma árvore, percebi que ainda estava pequeno, uma arvorezinha. Percebi que as árvores tinham alma a partir da minha que estava ali. No começo achei que estivesse dentro do tronco da árvore, tentei sair, puxei daqui, puxei dali e nada. Logo percebi que eu não estava dentro do tronco, o tronco era o meu corpo. Deu-me um desespero, uma vontade de sair correndo, mas não pude. Minha cabeça ficou confusa. Percebi que fazia tempo que estava ali, é como se eu começasse a me conscientizar naquele momento, vinham-me lembranças de dias anteriores e posteriores e posteriores e posteriores. Dei-me conta de que estava ali há muito mais tempo que eu pudesse imaginar. Senti minha cabeça rodar. Logo veio um senhor e colocou uma cadeira embaixo de minha copa e sentou-se na minha minúscula sombra de árvore pequena. Comecei a observá-lo e percebi que uma lágrima escorreu-lhe pela face. Quis perguntar o que se passava, o que o afligia, mas não pude, minha voz estava presa. Tentei gritar, percebi que não tinha voz, minha cabeça quase explodiu com meu grito contido. Contei até dez, precisava me acalmar. O velho estava com seu olhar distante e agora muitas lágrimas inundavam sua face. Não sei quanto tempo se passou, eu vivia como se estivesse num torpor, ora havia em mim uma consciência plena de meu estado, ora eu vagava em um pensamento como se sonhasse. Vi o velho pegando a cadeira e saindo lentamente, logo um cachorro veio ao seu encontro com o rabo abanando, recebeu um pequeno afago na cabeça e continuou em minha direção, ergueu a perninha e desaguou em mim sua necessidade fisiológica. A noite estava fria, senti minhas folhas geladas e úmidas e adormeci, despertei com os passarinhos em meus galhos, cantavam e eu me senti feliz, livre, como se pudesse voar. Não quis mais me importar com minha condição de árvore fincada na terra e com a condição única de observar dali um pequeno casebre que eu já sabia que morava um homem solitário e sua mulher, que varria o quintal cedo, depois entrava para a casa e cuidava de seus afazeres. O homem vinha para fora e sentava em sua cadeira, passava toda a manhã ali, inerte. E eu olhando para ele, também inerte. Mas a minha condição de inerte era real, eu queria correr, já havia corrido em alguma parte de minha existência, sabia disso. Já havia possuído braços, pernas, todos os membros humanos.

Tinha algumas lembranças que iam e vinham de minha memória, tempos que se misturavam com passado e presente, que aos poucos se firmavam em minha consciência vegetal. Passava dias e dias vivendo a vida daquela família, vendo eles entrarem e saírem do casebre, o cachorro abanando o rabo. O velho em silêncio por dias e dias, quando ficava ranzinza com a mulher e não queria conversa. Acarinhando o cachorro que sempre correspondia com o balançar do rabo. Depois o cachorro sumiu, depois a velha, depois o velho, todos foram sumindo, vi que eu estava bem maior quando vieram derrubar o casebre. Sentia que estava há muito tempo ali, mas ao mesmo tempo parecia que eu estava há uma semana, o torpor de minha mente me confundia com a vinda e ida dos dias, dos meses e dos anos. O que me fazia ter a nítida impressão de estar há muito tempo ali, era justamente as mudanças. Foram surgindo várias casas, ruas, mais pessoas, mulheres, velhos, crianças, cachorros , gatos. Meu cachorrinho ficou na memória, sempre me lembrava dele com sua cara que parecia ter um sorriso. Vi uma criança chegando e logo ela era uma mocinha, vejo-a agora andando lentamente, com cabelos bem brancos. Sei que é ela , conheço seu olhar, nunca a perdi de vista, mudou-se para a casa que foi construída no lugar da casa do casal de velhos. Aquela vontade de correr já não me desespera mais, foi só no começo, é que quando comecei a ter consciência, parece que eu sentia meus braços e minhas pernas, mas agora não, agora eu sinto meu tronco mesmo, bem firmado na terra, posso sentir até minhas raízes. Mas ainda me imagino correndo, brincando, abraçando, como se ainda não tivesse me acostumado a ser árvore. Hoje essas pessoas de branco vieram me pegar, dizendo que estou muito sujo e preciso tomar banho. Me ergueram e me levaram para o chuveiro? Como assim? Estranho, estou vendo em mim pernas e braços, será que voltei a ser gente?

Raquel Delvaje
Enviado por Raquel Delvaje em 22/08/2015
Reeditado em 01/09/2015
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