Um Viajor no Tempo - II

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Os caracteres acima, a ocultar propositalmente uma data, ali estão com o intuito de não privarem o leitor da surpresa que lhe reservo.
O meu primeiro exercício de projeção astral lança-me diretamente e sem apelação a um cômodo em penumbra, muito úmido e que exala um fortíssimo cheiro de mofo. Noto que é inteiramente construído em madeira, talvez mogno, ou qualquer outra de boa qualidade.
Bastante desconfortável, há um acúmulo considerável e desordenado de toda sorte de material, desde cordas, caixas empilhadas, baús e, incrível, até mesmo alimentos. Uma lamparina tremeluzindo uma tênue chama, queimando talvez óleo, é a única fonte de luz no recinto e está sobre uma escrivaninha de madeira pesada. Pensativo e debruçado sobre ela, encontra-se um homem que escreve a bico de pena. Sua vestimenta é um assombro, uma estonteante mistura de cores e de tecidos distintos, exageradamente ornada e apertada na cintura por um cinto de fivela descomunal. Eu me aproximo por trás do homem (não faria diferença qual fosse minha investida) e observo, por sobre seus ombros, o que ele escreve. Para minha surpresa, e aqui atualizando a escrita paleográfica, leio:

“SENHOR, posto que o capitão-mor desta vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova (...)”

Meu Deus! É o século XVI! Estou no gabinete do escriba do Rei! É a nau capitânia de Cabral! Estou sobre os ombros de Pêro Vaz de Caminha e acompanho a redação da carta a el-rei d.Manuel de Portugal!
Espere um pouco. Consideremos o fato de o Escrivão ter dado início à redação de seu diário cerca de dois dias após o “achamento da terra nova”. Portanto, necessito de recuar um pouco no tempo, caso não deseje perder a festa desse impagável achado (regressar alguns dias ou avançar independentemente da aleatoriedade só me é possível quando imerso em uma mesma viagem). Também sabemos, neste século XXI, que o Escriba do rei datara o final de sua carta na sexta feira, 1º de maio de 1500. Todavia, como veremos adiante, não suportei, por diversas razões, acompanhar in loco a trajetória do descobrimento até o seu final.
Recuemos, então.

21/04/1500

Estou no convés. Diogo Dias grita que há sinais de Botelho nas águas e alguém, com desespero, se debruça para procurar o corpo. Percebe-se, em seguida, tratar-se de um tipo de alga flutuante, o que é sinal evidente de terra próxima. Singramos ainda mais. Cai a noite.

22/04/1500

É quase tarde.
Um patrício, lá na casa do carvalho (aquela cestinha, em madeira, alocada estrategicamente no topo do mastro para visualização privilegiada do horizonte), esbraveja um sinal de salvação: “Têrra à vista! Têrra à vista!”
Para mim é o Brasil. Para eles, a Terra de Vera Cruz, e impõem, desde lgo, o poder político da igreja.
Cabe destacar a fidelidade do piloto Afonso Lopes ao lhe ser ordenado que lançasse âncora 19 braças à terra nova. Afonso Lopes, sem pestanejar, atira os ferros n’água e em seguida mergulha de cabeça dando início imediato às 19 braçadas até a praia. Lá chegando e dando de frente com os penduricalhos dos índios ao sabor do vento, mergulha de volta, agora pestanejando muito, e sobe ao convés depois de completar um total de 38 braçadas. Continuamos todos a bordo e damos a volta ao longo da costa. Cai a noite.

23/04/1500

O Sol vai já bastante alto e se a temperatura é tépida neste verão é porque ainda não lhe caíram sobre as cabeças o aquecimento global e o efeito estufa.
Já o capitão-mor, receoso de ser o primeiro, manda à praia, em um batel - uma pequena embarcação -, o nauta Nicolau Coelho, talvez em homenagem à Páscoa. Antes, outro piloto - Pêro Escobar - já recusara o ‘convite’ de aportar na areia, que não era besta de encarar aquela gente bestial.
Eu sigo com o Coelho, na proa do batel, feito um papagaio de pirata. A pequena embarcação, com Nicolau e seu passageiro invisível, toca a quilha na areia virgem do homem branco. Simultaneamente, alguns homens pardos, todos nus e com arcos e flechas, já o aguardam na praia, expectantes. A calmaria é total. Sequer uma brisa. E eu desconfio de que a vibração dos adornos no alto do chapéu de Nicolau Coelho seja de fato o resultado da tremedeira em seu corpo inteiro. A esta altura, surge uma nova leva de nativos, rijos (correndo), e Nicolau, vendo-os nus e rijos, ensaia desistir às pressas... Como ao invisível não há problemas, pulo do batel na água clara ao nível da cintura; Nicolau, sempre obediente ao capitão-mor, pula em seguida e inaugura, no Brasil, o primeiro Coelho ensopado. Com os pés em terra firme, o nauta curva-se à frente dos selvagens nus e sinaliza para que deitem suas hirtas armas. Mas alguns, talvez em face da carne fresca, as mantêm de pé. E Nicolau ensaia desistir mais uma vez.
Dá-se início à primeira transação comercial por estas terras. E tudo sem moedas ou impostos, que isto viria bem depois de preparado o terreno. Nicolau, em troca de algumas penas de aves, oferta-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, já imaginando o prejuízo que levara.
O sol declina, que a rotação é irreverente; as ondas batem por obra do ofício, o assunto míngua por falta de assunto e Nicolau, por não haver fala que se entenda, retorna ao batel em direção à nau capitânia, com os penachos de lembrança e salvo dos pardos nus com as suas armas de pé.
Já a bordo, incursiono pelos porões da caravela. É uma miséria! A imensa maioria dos viajantes é composta por condenados, em Lisboa, e que aqui estão para o risco dos primeiros contatos com a terra estranha. De um modo geral, o alimento, que se resume a toucinhos estragados, carne já em decomposição e bolachas mofadas, é avidamente disputado entre os renegados e os ratos que proliferam nos porões. A doença é generalizada e as mais flagrantes vítimas ainda não atingiram a maioridade: são os grumetes, crianças ainda que, em troca de algumas moedas, são entregues pelos próprios pais para o inferno desta aventura. Com os marginais à solta na penumbra dos porões úmidos os estupros contra esses aprendizes de marinheiro se dão impunemente. Noto, sem nenhum poder, que o horripilante pesadelo dos grumetes não é propriamente a saudade da terrinha, mas, “a nau...”.
E por não suportar mais nada ver e ouvir abandono o navio, que há outros ares e terras à vista...

                                               
Continua...