Um Viajor no Tempo - III
 
Foi uma coincidência, creiam-me. Redescubro o Brasil e, em seguida, vejo-o independente.
D. Pedro I havia já incorporado aliados importantes em sua estratégia para a independência do Brasil. Um deles, sem dúvida, fora o conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva - o primeiro ‘Boninho’ da globalização nacional.
O fato é que agora estou às margens do riacho do Ipiranga, em minha terra natal. O Príncipe Regente (somente em dezembro do mesmo ano receberia o título de D. Pedro I, o Imperador, nomeado por seu pai, D. João VI, inaugurando o primeiro caso de nepotismo no Brasil independente) encontra-se sentado à beira do córrego, o seu cavalo histórico amarrado a um arbusto, e conversa muito reservadamente com um dos oficiais de sua guarda:

Determinado a não acatar as determinações da Coroa Portuguesa, estou a fincar os meus pés aqui. O meu desejo pela libertação, do corpo e do espírito, é bastante antigo. Remonta aos meus 10 anos de idade. À época, experimentei, pela primeira vez, um desejo mórbido por libertar-me. Não estava mais a suportar a minha avó materna a chamar-me pelo nome inteiro, sempre à hora da tarde: ‘Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, vem tomar o seu leite, menino!”

O oficial tenta disfarçar o riso, levando a mão à boca como a tentar sufocar uma tosse iminente. D. Pedro não se dirige ao oficial pelo nome, de modo que ficamos sem sabê-lo. E eu fico imaginando o que faria Pedro para assinar a sua carteira de habilitação neste nosso século XXI.

Além do mais - continua D. Pedro -, em janeiro já disse que ficaria no Brasil. Para o bem de todos e felicidade da nação”.
Noto que D. Pedro dá uma piscadela ao oficial: “Então não vês as tupiniquins como são fogosas? Voltar para a Coroa? Jamais! Ainda há pouco, recebi notícias das Cortes a exigir o meu retorno urgente. Mas, não. Não farei desta terra uma colônia eterna. Eu a libertarei! Reúne a guarda, oficial. É chegada a hora”.

O cavalo, preso ao arbusto, relincha impaciente. Também não se encontra confortável com as amarras. Pouco depois, D. Pedro o montaria para a antológica sentença. A conversa prossegue:
Meu Príncipe” - diz o oficial, que se apruma antes de cumprir a ordem -, “o povo desta terra sabe o que a excelência de vossos atos está a propiciar?”
“Recolhe-te, oficial, que a elite está a saber muito bem! Não estou aqui a proclamar nenhuma república, a mexer no miolo da sociedade e, estejas certo, muito menos a libertar nossos escravos”.
São 16h20, sei que faltam 10 minutos para o famoso ‘grito’.
Pedro levanta-se, dirige-se ao seu cavalo e é auxiliado pelo oficial na montaria. Ao apoiar o seu pé esquerdo no estribo pendente à sela do animal e dar o impulso para montá-lo, os vapores libertários acumulados nas entranhas do príncipe, motivados por uma refeição improvisada no campo, libertam-se primeiro e, ao som de um grito rouco e ventoso, espatifam-se autoritários nas narinas do oficial. Este, compreendendo que a independência dos gases é preferível à morte, sujeita-se apenas a esconder o rosto e suspender a respiração.
O amigo leitor deve estar imaginando, até com relativa razão, não serem verdadeiros estes fatos, haja vista não figurarem nos anais da historiografia brasileira. Mas quais livros didáticos, na formação de jovens estudantes, revelariam tão constrangedoras situações? Contudo, sou testemunha ocular e auditiva. Não à toa, o tempo da narrativa é o presente.
Em seguida, Pedro ordena a tropa a tomar suas posições. Eu me afasto e junto-me a um grupo de caboclos ao largo da cavalaria. Com a sua espada em riste e acima de todas as cabeças, às 16h30, o Príncipe, convicto, despeja do fundo de seus pulmões:
Viva a independência e a separação do Brasil! Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro promover a liberdade do Brasil. Independência ou morte!”
Um caboclo ao meu lado, que assiste ao espetáculo com olhos arregalados e que me parece quase nada entender o que sucede, ao ouvir o final da sentença que alardeava a pungente expressão agarra-se ao seu vizinho amigo, também matuto, e entrega-se: “Corram que a morte vem aí!...”.
Pedro não faz adivinhações, mas sei que a independência lhe custará caro. Os Estados Unidos e o México serão os primeiros países reconhecedores do feito político. Já Portugal, para o reconhecimento da liberdade de sua ex-colônia, exigirá dos cofres do Brasil a importância de 2 milhões de libras esterlinas. Sem fundos, Pedro recorrerá a um empréstimo da Inglaterra. Consignar-se-á o primeiro contrato da dívida externa do Brasil liberto.
Bem, o corpo astral pesa-me mais que o físico. Deixo os caboclos, a cavalaria, os gritos e todos os odores de libertação. Estou cansado...

 
Continua...