Um Viajor no Tempo - IV

Quando despertei no canto daquele salão à moda antiga (há mais de dois mil anos!) logo o identifiquei com o cenário da Santa Ceia. Claro, eu já conhecia toda a sua história... Ou quase!
Jesus iniciava a repartição do alimento entre os seus discípulos e, de imediato, muito me intrigou a fisionomia do Mestre que, a separar os apóstolos à mesa em seis de cada lado, já fragmentava o pão para dividi-lo junto com o vinho.
Cristo, um judeu criado e educado por uma família da Galileia, apresentava uma cútis realçadamente morena, cabelos e barba bastante desalinhados e o Seu olhar, que me pareceu ligeiramente estrábico, estampava um par de olhos castanhos. Evidentemente, o Seu biótipo não se coadunava com as imagens que o retratam, hoje, em nosso mundo ocidental. Sem dúvida alguma, a Santa Igreja, ao longo dos tempos, traçou-Lhe um perfil de conformidade com o modelo apregoado pelas modernas academias de estética e beleza. Caso fosse hoje solto a perambular pela orla da praia de Copacabana, o Cristo seria confundido com um pedinte miserável.
Costumo carregar comigo um minúsculo gravador em minhas viagens no tempo para fins de tradução a posteriori por parte de linguistas  competentes. Afinal, não domino o aramaico, língua falada por Jesus ao comunicar-se com os seus discípulos e com o povo; tampouco o hebraico, em Seus discursos nas Sinagogas, e menos ainda o grego, cujo idioma, para mim, é grego...
Mas, estávamos lá. Sim! Eu também! À vista de a mesa inteiramente posta, não se poderia dizer que o cardápio era diversificado. Como sabemos, apenas pão e vinho. Porém, já que a intenção de Jesus fosse essa mesma, não critiquemos o convívio dos outros.
Como dizia, o Mestre dava início à repartição do alimento. Eu andava de um lado a outro, às costas dos convivas, com o propósito mesmo de captar-lhes, em meu gravador, qualquer comentário (não será demais lembrar que os seguintes registros aconteceram após suas respectivas traduções).
Era comum notar Simão Pedro, que tinha pouquíssimo estudo, a voltar-se para o lado de seu irmão, André, aliás, aquele que o apresentara a Jesus, para sempre pedir-lhe esclarecimentos sobre o que o Cristo estava a dizer, como os meninos atrasados de nossas escolas: “
Não entendi, André... - falou Simão Pedro -, Beber o sangue e comer o corpo?... Futuramente e talvez para que algum ensinamento se fixasse em seu cérebro, Pedro seria martirizado em Roma e crucificado de cabeça para baixo...
André, por sua vez, aparentava muito interesse nas explicações a Pedro, mas sempre ao seu modo perspicaz de ensinar. Não à toa, os dois irmãos eram sócios em uma indústria pesqueira e, segundo consta, André folgava uma vida mais endinheirada que a de seu irmão.
Tiago, pescador em Betsaida, nada disse durante a Ceia. Contudo, dizer pouco ou nada é uma característica dos ambiciosos e, na história dos perfis dos apóstolos, há relatos que confirmam a sua ambição marcante. Talvez por castigo ou pela necessidade de se cortar a ambição pela raiz, tenha sido ele o primeiro mártir entre os discípulos a vir morrer pela espada de Herodes.
De espírito exaltado e indisciplinado, o autor de O Apocalipse era constantemente acotovelado por Felipe, a seu lado: “
Quieto, João! Quieto, João!”. Em uma das réplicas de João, consegui gravar: “Ainda invento uma história contando o fim do mundo, Felipe. Você vai ver...”.
Lemos, hoje, que João teve morte natural aos 100 anos, único dos apóstolos que não foi martirizado. E penso que em respeito que tinham, à época, aos idosos.
Ao passar por trás do assento de Bartolomeu, ouvi em seu aramaico o que depois fora traduzido: “
Tomé, o que faz aqui se em nada crê?” A resposta foi imediata: “Eu não pedi pra vir, Bartolomeu. Foi Ele que me chamou”. Do final sabemos todos: Tomé não acreditaria sequer na ressurreição.
De Cafarnaum viera Mateus, o Cobrador de Impostos. A sua invejável humildade era reconhecida por todos, a despeito de sua profissão muito desprezada. Mas eu não pude partilhar desse honroso conceito depois de ouvi-lo pedir a Tiago, de Alfeu, que lhe repassasse ao menos um terço do lasco de pão que o outro recebera na repartição do alimento.
Judas (o Tadeu) e Simão (o Zelote) também nada disseram durante a Ceia. Contudo, não é de estranhar a macérrima biografia desses dois abençoados discípulos na história dos apóstolos.
Talvez eu não seja o único, mas, nunca fui simpático ao nome de Judas Iscariotes. É curioso como essa designação para pessoa encontra-se de tal maneira enraizada e negativa em nosso inconsciente coletivo que, à primeira enunciação de seu nome, de imediato já sentimos repúdio por esse personagem. Egoísta, ambicioso, portador de um espírito egocêntrico e traidor, somente mesmo Jesus para perdoá-lo! E como esta era exatamente a intenção do Cristo, isto é, o perdão, deixemos que Iscariotes enforque-se.
E depois de tomado e comido o pão e tomado e bebido o vinho, saíram todos com Jesus à frente. Por último, saiu Tomé, mas não sem antes enfiar goela abaixo o restinho do vinho no fundo do Santo Cálice que ficara sobre a mesa...

 
Continua...