Um Viajor no Tempo - V

Imagine o leitor despertar sobre a relva ainda úmida do orvalho que caíra durante uma límpida e imaculada madrugada. Em seguida, olhar à volta e nada encontrar que registrasse a marca indubitável da produção humana. No ar e espargida por uma brisa suave e intermitente, apenas a fragrância do mato virgem e do amálgama de todas as flores abertas a fitarem um céu inaugural. Assim eu despertei naquela manhã de data incógnita e de latitudes impensáveis.
Caso o amigo leitor estranhe este modo meu de abrir o primeiro parágrafo nos moldes da prosa poética, é de suma importância dizer que a abrangência do cenário, ao meu redor, serviria de mote ao mais técnico e rigoroso dos poetas parnasianos para a feitura de sua obra prima.
Também imagine, caro leitor, o silêncio de antes de todos os silêncios que possa a mente humana conceber; uma ausência total de sons, quaisquer sejam eles, somente interrompida ora ou outra pela citada intermitência da brisa que, ao tocar de leve a folhagem ainda não desvirginada, fazia suscitar um rumor somente comparado ao que é segredado entre os anjos...
Súbito, é arrebatada a profunda calmaria, e os rumores naturais da mata virgem dão lugar a ruídos agudos de caules tombados e de outros galhos quebradiços.
À minha frente, a correr por uma trilha transversal, segue uma mulher deslumbrantemente nua. Os cabelos, a tocarem-lhe a base da cintura, são como a seda encaracolada e os seios, firmes, balançam leves como as folhas sob a aragem. Ela ri um riso brilhante e deixa à mostra os seus dentes perfeitos e claros.
Logo a seguir, um homem cruza o meu caminho a tentar, ao que me pareceu, alcançar a bela mulher. Igualmente nu, ri ainda mais alto e o seu porte gigantesco segue arriando os gravetos indefesos.
Perdoem-me as leitoras neste crucial momento, mas, qualquer descrição de um homem carente de suas vestes lograria em fracasso todas as técnicas de uma prosa poética...
Logo após, alcançam os dois uma clareira. Exausta, a mulher aconchega-se de bruços sobre a relva orvalhada. Ao seu lado, e ainda me parecendo disposto, deita-se o homem com um dos quadris voltado para o chão. Menos ofegante, ele apoia a têmpora direita com uma das mãos e fita a companheira como quem olha para a primeira obra dos deuses. Durante algum tempo, e a inaugurar o primeiro gesto dos românticos, ele acaricia os cabelos de sua musa como resolvesse a desencaracolar toda a seda que encobria a pubescência feminina.
Eu já me preparava para ir embora, que minhas viagens não servem a admirar encantamentos passionais. Bastava-me, portanto, cerrar os olhos a concentrar-me nas técnicas do retorno. Porém, algo ainda me prenderia ali.
Um sibilo... Por enquanto, nada além de um assobio. Mas, em seguida o chocalhar de uma serpente fez vibrarem os ramos baixos da clareira que pôs à mostra o novo e perigoso personagem. A fera, que tinha olhos abrasados, chegou se esgueirando sobre a grama fresca e tomou o rumo do casal. E com o poder que lhe fora concedido pelos deuses de todos os tempos depositou ao lado da mulher uma suculenta maçã. O homem ainda esbravejou na direção de sua amada, cujo idioma jamais conseguira tradução. Contudo, a mulher dos cabelos de seda provou da fruta a seiva proibida e ainda a ofereceu ao homem, que, obediente ao seu amor, experimentou o gosto daquela transgressão.
De imediato, o céu nos cobriu plúmbeo, ventos vorazes sacudiram a mata desvirginada e uma voz grave ecoou por todo o vale...
E como me bastasse a técnica da concentração para a fuga, assim o fiz com muita tristeza no coração...


Continua...