Um Viajor no Tempo - VI

A princípio, o susto fora muito grande. Afinal, não é comum despertarmos às portas do inferno! Sei porque o Capeta estava lá, vermelho como “reza” a tradição, com o seu tridente afiado e a postos, sobre a cabeça um par de chifres pontiagudos.
Também me pareceu o tinhoso deveras acabrunhado. Sentado sobre uma pequena pedra ígnea, o anjo rebelde não inspirava a mínima rebeldia. Ao contrário, cabisbaixo e exibindo o seu garfo inofensivo estendido no solo fumegante, o rabudo suspirava. Daí a passar o susto e perder o medo foi um pulo. Eu me encontrava muito próximo a ele e, como disse, pudesse programar minhas viagens eu não estaria ali por nada deste mundo.
O diabrete, erguendo a cabeça com vagar, fitou-me bastante sério. E diante d’O Coisa à Toa, a fixar no fundo de meus olhos o seu olhar luciferino, confesso, sem nenhum constrangimento, que o susto voltara acompanhado de todos os meus medos.
Cabe aqui uma explicação: por tratar-se de um Anjo, embora “caído”, não era de admirar que soubesse de magias, segredos e poderes outros do universo, todos devidamente outorgados pelo Pai de anjos e demônios...
-
O que você quer? – perguntou-me logo o coisa-ruim.
Estremeci e gaguejei:
-
Nada, não, Príncipe. Estou apenas de passagem.
-
Por que me chama de Príncipe?
- Bem, é que está nos livros... nas escrituras sagradas... almas penadas...
- Sei, sei. Esqueça isso. Olhe para dentro
– disse, apontando para o gigantesco portão que, escancarado, deixava à mostra um salão inteiramente vazio e mergulhado no mais profundo silêncio. Decorado com todos os matizes rubros, aquela visão contrariava por completo as expectativas do que eu imaginava fosse o inferno.
-
Mas Príncipe, quer dizer, senhor, onde estão as almas que vêm para o calor das profundezas?
- Senta aí – disse-me o manfarrico. - Acontece que fui vítima de uma trapaça! Quando Deus inaugurou a alma nos homens e me fez cair por desobediência, Ele me prometeu um lugar onde eu pudesse receber as almas pecadoras. Como vê, fui enganado. Jamais consegui inaugurar os salões do Inferno...
- Então não há almas pecadoras? – intervi.
-
Há bilhões sobre a face da Terra, meu caro!... E muito mais outras que de lá saíram e retornaram sem uma única e rápida passagem por aqui.
-
Não entendo, Príncipe, isto é, senhor Anjo. Os livros que conhecemos...
- Lá vem você novamente com as escrituras sagradas!
– Interrompeu-me o diabrete. - Vejo que você ignora os interesses humanos.
Mas eu insisti:
-
Senhor Anjo, na idade média, quero dizer, conforme a noção que os homens têm sobre o tempo, o mundialmente famoso poeta Alighieri...
- Sei. O Dante.
- Pois é. Dante Alighieri descreveu o Inferno com minúcias...
- Quem sabe dos detalhes do Inferno sou eu, não acha? -
inquiriu-me, sério.
- Sim, eu compreendo. Contudo, quatorze anos consumiram bom pedaço da vida do poeta até que ele terminasse a sua Divina Comédia. Somente a primeira parte, a que diz respeito à sua área, Anjo, contém quatro mil, setecentos e vinte versos...
- Total desperdício
– sentenciou o mofino.
-
Como ousa? – Eu o encarei.
-
Cuidado com o que diz, fragílimo Ser da Superfície - devolveu-me com voz cavernosa.
-
Então os nove níveis circulares, de que tratou Dante e onde deveriam penar as almas que pecaram são uma farsa? – indaguei surpreso.
-
Como disse, eu sou a única vítima.
-Mas então, para onde se encaminham os transgressores?
-
Para onde? Para lugar algum!
-
Como assim?
- Ora, não percebes? – continuou o belzebu, passando a utilizar a segunda pessoa do verbo, talvez por mais persuasiva. – As batalhas fúteis de tua raça que fazem correr o sangue da humanidade pelas sarjetas como corre a lama fétida não estão embaixo, estão em cima! Não está embaixo - ó Ser da Superfície! - a carnificina animalesca que promove, como o irracional na selva, o teu semelhante! O poder do fogo de tuas bombas incendiárias que ardem as cidades e levam, junto, crianças e anciãos não está embaixo, como imaginas a causticante chama no inferno, mas em cima! A fome e a angústia geradas pela ganância dos teus irmãos que pregaram na cruz o filho enviado pelo teu Deus não estão embaixo, estão em cima! Ó, inocente Ser da Superfície, o Inferno não está embaixo, está em cima!...

E como não suportasse mais ouvir, então deixei o Príncipe a discursar para os seus salões vazios e despertei na superfície, convencido por sua dialética e tomado de pavor...

 
Fim da 1ª temporada.