ELEUTÉRIA DESENCARNADA

Eleutéria desencarnada parecia com tudo, parecia com nada. Espelho sem aço, índice de refração absoluto, negação da negação da negação, cabala, memória ausente, um pouco de aguardente para despachar os meninos sedentos.

Eu a via mortificada, uma navalhada certeira no meio do pensamento, no meio de uma reza forte, no meio do vazio do meio, em meio às coisas desimportantes da vida; as coisas desimportantes da vida estão no meio. Eleutéria, desencarnada, estava sempre no meio das coisas desimportantes, mesmo não sendo ela desimportante. Mesmo não sendo ela as coisas.

No meio de conversas vãs, entre fins e meios, estava a desencarnada Eleutéria. Jazia um pouco por dia, ou não jazia agora: antes, mexia a comida do santo, despachava mais aguardente, deitava a obrigação.

Mortificada, Eleutéria ri para mim e eu acho que devemos ouvir o Simonal; aguarde até amanhã, quando o Omar Cardoso for sintonizado do Oiapoque ao Arroio Chuí... Ri, Eleutéria, ri...

É mesmo sem jeito essa Eleutéria quase desencarnada, as coxas grossas e azuis, o peito duro e azul, o seu ventre de um azul reluzente e a minha libido mandando brasa. Foi para ser ontem, mas um passarinho desses que não vivem na sombra cantou em um escaninho da minha memória, e eu nem sabia ainda do estado de mudez das coisas, de Eleutéria assim quase rindo, daquilo tudo que eu não lhe confessava, de banhos de cipó caboclo, de romã, de aroeira... Era tudo isso uma forma improvisada e desesperada para manter um niilista crente de suas convicções. Ah, Eleutéria, meus descaminhos...

—Eleutéria, não quero mais comida de santo; — você, desencarnada, é vaga a memória da sua penitência; você agora ri para mim, mas eu tive que comer dois acaçás; quanta penitência, Eleutéria!

Eleutéria, eu não sei se ontem é hoje, você aí desencarnada e rindo para mim, talvez a espada de ogum tenha me aproximado de você, ou de minhas próprias infantilidades, das crianças que eu desisti de ser.

Sabe, Eleutéria, já visitamos os invisíveis e lá eu lembrei dos seus acaçás, dessa sua fé que sempre encontra no oco do meu peito um oco meramente tuberculoso, tísico, galopante. O seu sorriso, entretanto, mesmo mortificado, é assim: com ele, velas acenderão, tambores hão de bater, atabaques, bongôs, ganzás aportarão em algum céu de Viena, onde manteremos sempre o sol aquecido com o que sobrou do bambá que você apurou para a última moqueca de pitu, lembra?

Masé Quadros
Enviado por Masé Quadros em 23/10/2015
Código do texto: T5424927
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