Conto de lugar nenhum

Estava eu andando sem rumo. Via o tempo passar. Olhava para o céu e refletia sobre o “bicho papão” da solidão. Meio entediado avistei uma construção. Olhei para os lados e não vi mais nada adiante. Entrei e percebi que algumas “figuras” lá se encontravam conversando.

Imaginemos um lugar onde não se situa em um lugar. Um local onde o tempo nem o espaço existem. Lá Michael Foucault estava sentado em uma cadeira perto da porta. Olhava atento quem entrava ou saía. Analisava os fatos e conversava, descontinuamente, com o Extra Terrestre andrógeno Ziggy Stardust. Falava como a “virtude” dos camaleões é algo que está incorporada ao íntimo do ser humano. “Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo”. Dizia.

Do outro lado da porta, encostado na parede, Andy Warhol fumava um cigarro exalando a fumaça para cima com assopros sincronizados produzindo círculos. No intervalo entre uma baforada e outra ele olhava para uma lata de sopa, que estava jogada no chão e parecia imaginar uma futura obra de arte. Nietzsche, atrás de seu volumoso bigode, fazia retoques no esboço do seu Anticristo e olhava Martinho Lutero perdido em seu trabalho de tradução da Bíblia. Voltaire apresentava o seu livro: Cândido ou o Otimismo a Diderot e a João Cabral de Melo Neto. Dizia que podia não concordar com tudo que falamos, mas lutaria até o final pela nossa liberdade de expressão. Fez mais algumas indagações e sentou-se ao lado de Aristóteles que ouvia Fernando Pessoa. O poeta dizia que se sentia mais poeta do que gente. E virando-se para o meu lado falou com os olhos perdidos:

– “Mas que louco é que estou?”

Continuei andando para dentro do estabelecimento. Vi Freud olhando para Gandhi, que estava meditando. O psicólogo parecia traçar todo o perfil do monge. Este se encontrava em transe, pois com todo o ruído constante que faziam as vozes das pessoas falando, cochichando, ele não abria os olhos e nem esboçava um movimento.

Rousseau e Sócrates pareciam preocupados com um jovem de cor alva de orelhas pontudas que estava em frente, do outro lado da mesa. Cheguei mais perto e descobri que o jovem era o Elfo: Legolas. Ele olhava para os filósofos e dizia:

– A imortalidade pode ser amarga, mas traz muitas amizades. Isso compensa os belos amigos. Mas vê-los indo embora... é muito difícil.

Escutei aquelas palavras e senti toda a profundidade do seu dizer.

A minha frente Manuel Bandeira conversava amigavelmente com Isaac Newton. Eles compartilhavam a mesma mesa. Falavam sobre uma maçã que estava em cima do balcão. O poeta dizia que as mulheres eram como maçãs, as melhores estão lá no topo da árvore. Seu companheiro olhou para a fruta e disse:

– Sim as mulheres são como maçãs, mas seguindo a lei da “gravidade” a dor é menor quando cai uma maçã, do que uma mulher em nossa cabeça.

Joana D’arc entrou de supetão e pediu um copo d’água. Parecia cansada e com o olhar perdido respondia algo a alguém que não estava ali. – Pelo menos eu não vi ninguém ao seu lado.

Observei Van Gogh, com uma faixa rodeando sua cabeça e cobrindo o que restou da sua orelha tomando uma dose de absinto com Vinicius de morais e Renoir. Este já mostrava sinais de atrofiamento em suas mãos. Salvador Dali fazia estudos para algo que parecia ser o seu quadro Persistência da Memória. Ele quebrava ovos e ficava olhando para um relógio no braço de Picasso que ouvia Carlos Drummond de Andrade falando sobre os seus Contos de aprendiz. Homero na mesma mesa, dava piscadelas para Cleópatra, na mesa ao lado, sentada entre Charles Bukowsky e Garrincha. O velho safado tentava abaixar o decote da rainha, enquanto o ídolo do futebol brasileiro se levantava e cambaleava, com suas pernas tortas a procura do banheiro. A rainha conseguiu se levantar e o seguiu até os dois sumirem por uns “bons” minutos.

Barrabás estava sentado no chão e comia algo de forma bastante sôfrega. Parecia um punk em suas atitudes, seus gritos e rosnados. Ele gritava para Leonardo Da Vinci e exigia que ele parasse de fazer barulho com uma engenhoca que, a meu ver, era parecida com um ventilador portátil.

Andei até o final do recinto e uma figura chamou minha atenção. Era pálida, pequena e estava na parte mais escura da sala. Parecia se esconder. Começou a dizer coisas e seu nariz cresceu. Percebi que ele era feito de madeira e que conversava com um velhinho ao seu lado. Com uma voz bem triste ele perguntava:

– Gepeto, eu não sou um menino de verdade?

Olhei para o boneco e ele retribuiu meu olhar. Esboçou um sorriso triste e seu semblante era melancólico.

Fiquei encostado em um piano que se encontrava do lado direito da sala. Um casal trabalhava em mesas postas de frente um para o outro. Eram Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Eles se mexiam de forma tão sincronizada que pareciam autômatos. Imaginei como se comportariam em suas intimidades, seus gestos e afetos.

Henfil falava com Santos Dumont e pareciam se dar muito bem. O cartunista produzia gestos com as mãos e notei que fazia menção em desenhar um avião. A seguir fez movimentos com a mão mais uma vez, e deu ênfase a acrobacias. O pai da aviação olhava e se mostrou contrariado. Olhando aquela cena imaginei um Cartum, onde a Graúna pilotava o 14 Bis e seu inventor corria atrás do aparelho com cara de poucos amigos. Fiquei divagando nesses pensamentos até ser surpreendido pelo que veio a seguir.

Um mímico subiu ao palco, que ficava no fundo da sala. Era um vagabundo com chapéu coco e uma bengala. Tinha um bigodinho meio ralo e o rosto coberto de pó de arroz. Fazia uma bela apresentação sem dizer uma única palavra. Seu corpo parecia falar. Todos os presentes no recinto pararam o que estavam fazendo para apreciar aquela apresentação. Até mesmo Darth Vader, que tomava um drinque com um canudinho enfiado em seu capacete parecia olhar e admirar. Quando o pantomimo desceu do palco foi rodeado por Sheakespeare, Moliere, Bocage e Ariano Suassuna. Este levava um cartaz onde consegui ler os dizeres: “Viva a Cultura Popular Brasileira”. Os cinco artistas ficaram conversando animados e admirados uns com os outros.

O vampiro Lestat se levantou e olhando para o lado do balcão dirigiu seu olhar a Baco pedindo mais vinho. O Deus Romano se levantou e andou até a sua adega. No meio do caminho pediu ajuda a um ser de estatura elevada com um capacete de metal em cima de longos cabelos loiros e que levava na mão direita um martelo gigante. Eles trouxeram dois barris grandes de vinho e chamaram Moe, Larry e Curly para servir o líquido aos convidados. Os três vestidos com roupas de cozinheiros serviam e alegravam quem se aproximava. Um deles pediu para que a bagunça fosse organizada. O primeiro a entrar na fila, que logo se formou, foi Machado de Assis. Ele se aproximando do barril e olhando para Emile Zola disse:

– Viva o Humanitismo! Depois falou das uvas que produziram aquele vinho até chegarem em sua garganta e refrescá-la com o néctar dos Deuses.

Peguei duas canecas contendo vinho e as levei para a mesa de Augusto dos Anjos. Este perguntava a Charles Baudelaire se estava com o rosto pálido ou os olhos vermelhos. Sua mania de doença o afetava tanto que nem olhou para o vinho. Dizia que não iria beber, pois não se sentia bem. Profundissimamente hipocondríaco era a hipocondria em pessoa. Virei-me para o lado e ofereci o copo a Clarice Lispector. Saboreando o vinho notei-a pegando o recipiente de minha mão e tomando-o de um só gole. Depois ela acendeu um cigarro e saiu do recinto sem dizer uma palavra.

Kafka conversava com um senhor de cabelos engomados e um bigodinho ridículo. Aquele ser repugnante usava um uniforme militar e levava um símbolo em seu braço. Discutiam sobre várias metamorfoses humanas, cada um com suas intenções. Percebi que Ricardo Piglia, na mesa ao lado, anotava toda a conversa e Virgulino Ferreira, na mesa do outro lado amolava seu facão olhando de forma não muito amistosa para o homem de uniforme.

Isaac Asimov discutia com Albert Einstein sobre a possibilidade de viagens no tempo. Aldous Huxley ouvia atento e refletia sobre as teorias que surgiam acerca do assunto. Pensava em um Mundo novo que fosse admirável, liberal e tecnológico.

O robô Marvin, vindo do restaurante no fim do universo jogava uma partida de xadrez com mestre Yoda. Já estavam combatendo há horas. O robô, sempre reclamando de sua existência parecia não atrapalhar o seu adversário. Maquiavel, impaciente observava o tabuleiro do lado esquerdo e parecia pensar em algo olhando de vez em quando para César Borgia, enquanto Will Eisner, com todo seu talento de quadrinhista desenhava aquela cena. Imaginei uma História em quadrinhos onde o Príncipe se encontra com o autor do livro e os dois botavam em prática todas as estratégias em uma partida de xadrez, mas esperavam sua vez de jogar, impacientes.

Lorde Morpheus, sem fazer um único ruído entrou no recinto com um traje mórbido e os cabelos arrepiados. Trazia em uma das mãos uma chave grande e dourada e na outra a cabeça de Orpheus. Esta sussurrava coisas inaudíveis a ouvidos humanos. O único que percebeu algo que saía da boca da cabeça falante foi o Doutor Moreau. Este mostrava a Charles Darwin suas idéias sobre a Teoria da Evolução das Espécies. Os dois cientistas se mostravam bastantes interessados nos trabalhos propostos, que nem perceberam Napoleão, Edgar Alan Poe e Jim Morrisson abraçados, cambaleantes e tropeçando ao lado. O Roqueiro ofereceu um comprimido ao Doutor Pinel. Este recusou dizendo que não precisava de nada para alterar sua percepção da realidade. Abraçou o cantor, o escritor e o general francês, e falou em se livrarem das correntes. Após isso saiu de perto cumprimentando-os. O Doutor ainda trocou algumas palavras com Calígula, que não parou mais de sorrir, e depois saiu pela porta da frente. O imperador romano vinha abraçado a Freddie Merculy e Cássia Eller, seguidos por Oscar Wilde, Elis Regina e Pablo Neruda. Os seis subiram em uma escada, que só notei neste momento, e ficaram ausentes por um longo tempo. Quando retornaram sentaram-se em uma mesa onde Goethe fazia alguns rascunhos ouvindo um ser que não era humano. Sentaram-se e ficaram bebendo sorridentes. Aquele ser tinha patas de bode, pêlos no corpo e um par de pequenos cornos. Ele dava gargalhadas altas e todos os componentes da mesa se divertiam muito.

Che Guevara, Zumbi dos Palmares, Policarpo Quaresma, Fiodor Dostoiéviski e Sun Tzu escutavam atentos às argumentações de Karl Marx. Ficaram um bom tempo discutindo, até Trotsky aparecer e tomar a palavra. Os revolucionários debatiam e bebiam com prazer. Seus discursos eram demorados e cheios de ideologia. Fiquei escutando por um momento. Aquilo me fascinou. As falas inflamadas com algumas discordâncias, mas que não tiravam a imponência daquele encontro entre pensadores.

Notei mais ao lado, Luiz Gonzaga tocando sua sanfona para uma roda de pessoas. Aproximei-me e reconheci: C. S. Lewis, Leon Tolstoi, Rembrandt e Vigotski. O grupo ouvia o mestre tocar um baião e alguns até acompanhavam o ritmo com os pés. Percebi outra figura ouvindo o som da sanfona distraído. Era Tolkien e ele parecia reconhecer alguém ao lado, pois olhava para outra mesa e esboçava um sorriso.

Andei mais um pouco e percebi um velhinho bem simpático no meio de uma roda de crianças sentadas ao chão. Era Paulo Freire. Sentei-me junto aos pequenos e ouvi a palestra do educador. Ele apresentava coisas simples que estão incorporados ao dia a dia das crianças. Ensinava-as a formar palavras e mostrava um pouco de sua pedagogia da libertação. Fiquei cada vez mais encantado com tudo aquilo. Todas aquelas célebres cabeças juntas. Idéias fluindo e se incorporando ao meu pensamento. Era um frenesi intelectual.

Levantei-me e vi Bach mostrando umas anotações contendo logaritmos musicais a Pitágoras. Este, encantado parecia olhar o papel e ouvir a melodia que a partitura produziria. Fazia cálculos mentais e ficava impressionado com a perfeição da junção entre a matemática e a música.

Olhei para o lado e avistei um senhor bem trajado se aproximando do piano. Beethoven sentou-se ao instrumento e dedilhou seu Concerto Para Elisa. Mozart e Patativa do Assaré deixaram de fazer rimas e com lágrimas nos olhos ouviam emocionados. Todos se sentiram bem por um momento. A música acalma, aproxima e conserta tudo. Fiquei extasiado em ouvir o mestre tocar uma melodia que eu gosto muito. Ao final da apresentação os aplausos vieram e todos ficaram de pé. Quem estava lá se sentiu de bem com tudo. O músico não escutava o barulho das palmas inflamadas, ele olhava concentrado para suas partituras, por isso continuou tocando, só que desta vez o som do piano se tornou um som ambiente, pois a conversa prosseguiu.

Um homem de estatura mediana, cabelos curtos loiros e quase lisos, olhos levemente puxados e com óculos redondos no rosto, apareceu e gritou para mim: “O sonho Não acabou!”. Reconheci nessa frase uma coisa que eu já vinha sentindo. Se esse lugar se situa em um sonho eu quero ficar e aproveitar o máximo possível. Toda essa sabedoria, magia e encanto juntos me transportaram para esse lugar. E agora eu sei que tudo é possível. Esse lugar está lá onde não existe lugar algum. Um lugar que todos podem ir. Um lugar acessível. Basta aproveitar. Basta acreditar. Basta usar a imaginação.

Marcelo Pompom
Enviado por Marcelo Pompom em 27/10/2015
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