O dia que a inveja se matou

Estava ali, poucos metros da avenida movimenta, numa calçada pouco lavada. Não pulara de um edifício muito alto, numa rápida contagem, poderia considerar ter quatros andares. Quatro andares que fizeram um estragado naquele corpo fino e frágil.

Ninguém viu o ocorrido, a contar pelo sangue já um tanto seco, foi de madrugada, os humanos dormiam ou assistiam Tv. Pelo amanhecer, alguns trabalhadores, destes que acordam seis horas antes dos patrões, notaram aquela massa desforme. Se assustaram mais com os longos cabelos pretos maltratados que cobriam quase todo o corpo do que com alguém morto.

Se na época de Jesus já era difícil alguém ajudar o outro na estrada, mesmo estando vivo, quanto mais hoje. Não fizeram nada. Não ligaram para ambulância, polícia, defesa civil ou carrocinha, seguiram adiante, só trocaram a marcha, de sonolenta para reflexiva.

- Ei, o andarilho por profissão que vinha no final da rua gritava, Ei, ei, não deixe que a culpa tome o lugar da inveja. Ei, ei, não deixe que a culpa tome lugar da inveja.

Os humanos que viam o corpo e ouviam palavras proferidas por golpes fedendo a cachaça, aumentavam os passos.

- Eh inveja, somos eu e você. Um andarilho com uma garrafa de pinga na mão e na outra o corpo da inveja. Como sei que é a inveja? Como sei que é você? Nossa, ainda se surpreende ao saber que eu te conheço e descobri os teus restos? Fique calma inveja morta, não mexa o teu cadáver, vão pensar que somos dois, vou até dar uma limpadinha aqui, só não feda mais do que eu, irá chamar a atenção.

Tomou a coberta cheia de furo e manchas urbanas e começou a limpar o sangue do chão. Não teve muito trabalho, estava seco, agora era uma simples mancha. Ajeitou o corpo da inveja na parede do prédio, deixou a face para baixo, o longo cabelo ruim fazia a parte de lhe esconder o sulco cavado e a boca fina.

- Assim, pronto, eu do teu lado. Podemos conversar numa boa inveja, fique tranquila. A culpa não vai tomar conta de nada aqui, quer um gole, tome vai, me acompanhe. Já iremos dormir. Ah, quer saber como te reconheci? Sim. Foi você que me trouxe para rua. Não preciso recapitular os bens que tinha, a família que tinha, a vida social que tinha. Tudo se foi, mas não me incomodo não. A vida aqui na rua é muito melhor, pois foi só ela que me fez libertar de você. Na rua, sem nada, para que invejar? A senhora está mais presente no que tem algo, não precisa ser muito, um pouco. A senhora chega, insinua que pode ter mais e acreditamos. Olhamos para nosso amigo, invejamos a promoção. Olhamos para nosso irmão, invejamos o carro. Olhamos para nosso compadre, invejamos sua vida tranquila.

- Invejei, assim como me sugeriu. Nada físico aconteceu. Em nada melhorou minhas condições financeiras ou emocionais. Ainda, quando tentava resistir a ti, já num estágio de consciência e decadência, incutia no ser invejado uma desqualificação, cabível e incabível, apenas para não me sentir inferior. Esta é tua técnica inveja, usar os que se sentem inferior para torna-los mais inferiores. Para que inveja? Por que a senhora faz isto? Te conheço, basta de gentilezas, fique aqui sozinha, já me fez sentir inferior a tudo, me libertei uma vez, vindo para as calçadas, adeus.

O empático andarilho alcoolizado levanta cambaleando, zonzo, dá dois passos, porém mais adiante desmaia e sem se incomodar ali fica.

A inveja dura, imóvel, até parecendo gente que dorme. Horas antes, ela tivera uma crise. Senhora Inveja estava invejada de tudo. Até aí tudo bem, sua natureza invejatativa representava o que ela era, um composto de inferioridade e superioridade. Acontece que começou a sentir inveja de si. Uhm! Como assim? Inveja de si mesma? Exato, sentiu inveja de si, por o si era mais evoluído e tinha mais status do que o si mesma.

Atormentada por pensamentos tão profundos e dolorosos, confusa, subiu dois andares do edifício que morava para tomar um ar e clarear os pensamentos. Um grunhido saia da boca de si, ai que inveja de mim. Não, mim não pode ser melhor do que eu! Não, não, não! Preciso superar a mim, se não eu não serei feliz. Ai que droga, eu sou melhor do que mim. Não poder ser.

Zonza, atordoada, olhou para o horizonte que aquela altura permitia, o prédio da frente, sem hesitar, precisava ver o eu para que o seu si prevalecesse, com a ideia fixa de se superar e de destruir, pulou.

Tadinha da inveja, morreu da inveja.

Ou seria, de inveja? Ai que inveja de quem conhece tais regras.

Fábio Piantoni
Enviado por Fábio Piantoni em 14/12/2015
Reeditado em 17/12/2015
Código do texto: T5480211
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