O cascalho de Jacobina.
Eu sou um cascalho. Um cascalho polido. O cascalho polido de Jacobina. Seguiremos com calma, não deitarei pedras à frente da correnteza.
Antes, será necessário lembrar que o nome Jacobina é de um personagem de Machado no conto “O Espelho”, e que a expressão jacobina, na língua indígena tupi, significa “cascalho polido”. Daqui, seguimos com o meu relato.
Jacobina, o personagem, sugere haver no homem duas almas: uma, externa, com visão de fora para dentro; outra, interna, com visão dirigida de dentro para fora. Isto equivale dizer, sob a ótica de Jacobina, que a alma externa de um homem pode tomar a forma de um objeto, qualquer seja ele, ou mesmo o contorno de outro ser vivente, ao passo que a alma interna será a essência imutável do ser. Eu resido nesta última. Sou o cascalho polido.
Incrustado na alma interna de Jacobina, eu sempre estivera a irradiar, à sua revelia, os meus milagres. No entanto, somente após um quarto de século de sua vida fora ele capaz disto dar-se conta.
Sucedeu que Jacobina, portanto aos vinte e cinco anos, fora merecedor da patente oficial de alferes da guarda nacional. Muito natural, entenda-se, que tanto o círculo de suas amizades como o de seus familiares o bajulassem sem cessar, à vista de sua farda engomada e invejável. E ainda mais fora acarinhado por uma tia, de nome Marcolina, que terminou por convidá-lo a passar uns tempos em seu sítio.
Muito bem. A título de brevidade, que os amigos têm mais o que fazer, eis que, refém de irrefreáveis elogios por parte de sua tia e mesmo provenientes da mordomia da casa, no sítio, Jacobina, na certeza de que o seu posto de alferes atribuía-lhe ares de superioridade, não dá-me ouvidos e privilegia a sua alma externa, incorporada em seu engomado e invejável uniforme. Mas o destino anseia, eternamente, pelo menor prejuízo, de modo que Marcolina necessitou de ausentar-se da casa por extrema necessidade. Por conseguinte, a mordomia, escravos que eram, aproveitou-se da ausência da patroa e fugiram todos. A partir daqui, Jacobina encontra-se entregue a uma absoluta solidão, e eu, sempre a postos, pronto a dar início ao meu trabalho. Claro, a meu favor um oportuno espelho, aliado meu, presente ofertado a Jacobina, alguns dias antes, por sua tia Marcolina.
Inteiramente só, imerso em solidão profunda, quem haveria de motivá-lo em seu narcisismo? Eu percebia, minuto após minuto, que Jacobina viria a reconhecer-me. Deu-se então, o alferes, a mirar-se no espelho que ganhara. Mas ele o fazia com suas vestes comuns, apaisanado, de tal sorte, ou azar, que os seus contornos físicos no vidro refletiam linhas informes e aterrorizantes. Eu já sabia. Ele não. Eu sou um cascalho limpo. Ele, a ser polido. Durante as repetidas vezes em que Jacobina voltou ao espelho, eram somente borrões no vidro o que ele via. 
Já no limite com a loucura, lembra-se de sua farda de alferes e veste-a. Volta ao espelho e se defronta com a sua imagem integralmente nítida, ausente de fios disformes e borrões, e que lhe sorri de volta.
Nesse divisor momento, o nosso personagem compreende, de súbito, que a sua farda era a sua alma exterior e que ela, servida do alimento anímico que o próprio alferes lhe punha à frente, roubava-lhe, aos poucos, a condição de homem; que ele podia entender isto porque enxergava através dos meus olhos - a sua alma interior -, e que, enfim, “não era mais um autômato, mas um ente animado”.