NOVO DEPUTADO*

Iria começar mais uma revisão de seu novo conto. A quinta desde que escreveu o primeiro rascunho. Fosse em outros tempos já teria mandado para publicação. Na verdade, antes escrevia e já apertava o "enter". Tinha até medo de reler seus textos antigos, tamanho eram os erros de concordância, gramaticais, de estilo e outros que se deparava. Mas sentia falta daquela inocência, daquele acreditar que só era necessário "um teclado à mão e uma ideia na cabeça".

Resolveu se dar uma pausa. Olhou para o busto de Goethe, que mantinha-se em sua gravidade habitual. Não era o interlocutor ideal para suas dúvidas. Voltou-se para o quadro com o retrato de Dostoiévski. Um gênio epilético cheio de vícios e com tendências místico religiosas sempre rende melhores conversas. Sentiu um frio familiar e percebeu que o ambiente tinha se tornado levemente esfumaçado. Olhou no relógio. Eram três da manhã. Deu um pequeno sorriso. Fazia muito tempo que não recebia visitas fantasmagóricas.

-Boa noite. Sou Matraga, o Crítico. Estou assumindo hoje uma vaga permanente na assembléia da sua mente.

O tom austero não combinava com o visual bonachão de "gatão da meia idade". Quase perguntou porque estava de óculos escuros no meio da madrugada, mas desistiu. Não era o tipo de pergunta que se faz a uma alucinação. Há tempos já não se assustava com essas visitas noturnas. A verdade era que, se elas eram sinal de que era louco, não queria ser são. Mas agora era sacanagem! Acreditar que sua mente é uma espécie de câmara dos deputados, onde cada parte da sua personalidade se apresenta como um parlamentar, tudo bem. Mas agora elas começarem a aparecer para apresentar suas credenciais... A coisa estava saindo do controle!

-Pois não. Por favor, sente-se e vamos conversar. Aceita alguma coisa para beber?

-Não precisa. Trouxe uma Serra Malte. Não ofereço pois só tenho esta. Você não pretende publicar este conto ainda, não é?

-Você está de brincadeira! Eu já revisei a ideia original quatro vezes. Pus virgulas na frente de todos os "mas", troquei todos os tinha por havia, não coloquei aspas nos diálogos, não repeti palavras. O enredo é bom, todo o texto não dá uma página e estou trabalhando nele faz quatro dias!

-Isto indica uma grande melhora sua. Na verdade, é este o meu trabalho.

-Quer dizer que essa aporrinhação toda que eu sinto agora, essa preocupação com cada letra, pronome e tudo mais... É você?

-Isto mesmo. Inclusive queria te dizer que esse seu novo conto até que esta bom. Você avançou muito na condução dos diálogos. Mas acredito que seria importante a inclusão de pequenos detalhes, menções pequenas e discretas na narrativa que possam fazer o leitor se localizar com mais facilidade.

-Alô, terra chamando perfeitolândia. O moleque vem por uma viela e por um escadão, fica dentro de uma reentrância que a parede da sua casa faz com a pedra que sustenta o morro, sobe na laje do vizinho para ver a mãe "descer até a avenida" para poder pegar um ônibus. Que mais eu posso colocar?

-Tudo bem, tudo bem. Isso é o de menos. O problema mesmo está no final.

-Mas como?! O final é perfeito! O filho se deixa bater e se esforça para chorar para que a mãe possa ficar feliz. Tudo e nada se resolve. A melhor ideia que tive há muito tempo! Qual é a porra do problema com ele?

-Isso tudo bem. Mas "sono dos justos". É muito clichê.

A raiva vai subindo, sente sua face enrubescer. Se vira para o computador e clica em "publicar". Ele desaparece.

-Seu microfone está cortado, vossa excelência!

Aristoteles da Silva
Enviado por Aristoteles da Silva em 16/07/2016
Reeditado em 29/03/2022
Código do texto: T5699556
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