A Hora da Zona Morta
Histórias de hospital são contadas desde a primeira vez em que um grupo de pessoas – de início, médicos e enfermeiras, depois, o pessoal do laboratório e do RX – se reuniu ao redor da mesa do refeitório, passando a madrugada em vigília às voltas com o lanche noturno e um bule de café forte.
Vou contar uma dessas histórias.
Ocorreu num hospital universitário de São Paulo.
Quanto aos personagens e à época exata dos fatos, confesso que não sei. Não sei, ou não me disseram; ou se disseram, não dei importância, pois o que me impressionou foi o desfecho dos acontecimentos a ponto de ter-se tornado, para mim, uma verdadeira obsessão por muito tempo.
Já a ouvi várias vezes, ora de um jeito, ora de outro, e se você concordar com um vestígio de verdade nela, então eu me darei por satisfeito com a minha sanidade.
Três da manhã é a “hora da zona morta” em qualquer plantão de hospital.
A “hora da zona morta” é assim chamada porque se encontra na exata metade entre os dois horários extremos – meia-noite e seis da manhã -, extremos em que “toda a equipe” ainda está, ou voltará a estar, ligada no modo vigília.
Os extremos são claros e brancos de luz; a “hora da zona morta” é um lusco-fusco cinzento de sombras.
A “hora da zona morta” é o momento da preguiça, da postergação de condutas e das decisões difíceis. É a hora em que é melhor as coisas ficarem como estão.
Mas não é só isso.
A “hora da zona morta” implica numa quase total “falta de testemunhas”.
O Pronto-Socorro pode ainda viver alguma agitação, mas as enfermarias encontram-se na penumbra. As poucas enfermeiras do turno lutam contra o sono, os médicos dormem encolhidos em algum quartinho com frigobar ao alcance do telefone.
A UTI é uma mistura confusa de atividade mecânica e luminosa – ruídos soprosos de respiradores artificiais, alarmes sonoros e o brilho pulsátil dos monitores – num ambiente à meia-luz.
Mais uma vez, as poucas enfermeiras do turno lutam contra o sono, os médicos dormem encolhidos em algum quartinho com frigobar ao alcance do telefone.
Lembre-se: quase total “falta de testemunhas”. Isso é muito importante.
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Eram somente dois naquela “hora da zona morta” da UTI: o médico e a enfermeira.
O doente afogava-se na falta de ar.
O doutor já estava debruçado sobre ele.
A máscara de oxigênio, cobrindo boca e nariz do paciente, devolve algo de róseo à coloração azulada da face, da ponta dos dedos e da pele marmórea, pegajosa e fria, mas os dois sabiam que era uma questão de tempo.
Hora de resolver, de uma vez por todas, o problema da oxigenação: um tubo na traqueia para levar ar enriquecido aos pulmões.
Ainda havia algum tempo, e a coisa nunca é muito complicada, mas a cânula oito e meio enfiada através da boca, que devia deslizar suave pela garganta, inventou de emperrar no meio do caminho.
Certo... Essas coisas acontecem com uma oito e meio. Com qualquer um. Os livros falam uma coisa, mas quando você inventa de enfiar uma oito e meio... Pombas, essas coisas acontecem! Até a enfermeira sabe, pois ainda sorri confiante ao ceder ao médico a número oito.
Nada! Quanto você acha? Noventa quilos? Um metro e setenta e cinco, você disse, não é? Mas nem essa vai. Passe a sete e meio, e a enfermeira já deixa de sorrir enquanto responde cedendo a nova cânula. Bate, um obstáculo, empurra de novo e não vai. Volta com sangue na ponta.
Vamos de sete, e lhe surgem na testa as primeiras gotas de suor. A enfermeira treme o queixo. O doente arqueja. Um tranco de laringoscópio no palato faz quebrar dois dentes. Vejo lá, a epiglote como um alçapão, as cordas vocais. Mas por que essa desgraça não entra?
Seis e meio, e a enfermeira com cara de choro tenta conter os movimentos convulsivos dos braços do doente, o suor empapa o jaleco do doutor e as gotas agora escorrem até a ponta do nariz.
Mas quem disse que entrou? A seis e meio voa de raiva e impotência através da sala deixando um rastro de sangue e baba atrás de si.
A enfermeira corre para fora em busca de algum material vociferado.
A máscara de oxigênio já não faz o mesmo efeito. Cianose, roncos e estertores misturados, pressão e batimentos caindo. Tudo é vermelho, e pisca; tudo é alarme, e pulsa.
O médico pensa estar sozinho. As opções se reduzem. As ideias não são claras. É a “hora da zona morta” em seu apogeu.
Mas os sentidos do médico tornam-se aguçados. A tal da adrenalina tem a sua utilidade.
Na periferia do campo visual, detecta algo em movimento, vira-se, mas não há ninguém. Volta ao que estava fazendo, nada de útil, porque não sabe de onde tirar mais recursos. Parece que um vulto corre por trás, da direita para a esquerda, mas nada há ali.
A nuca se arrepia como quando do pressentimento da presença de uma companhia sobrenatural.
Agora ouve um ruído guinchado de rodinhas faltando lubrificação. É a enfermeira com o material para a traqueostomia, pensa. Não é toda hora que se corta a garganta de um sujeito, embora sempre haja uma primeira vez, pensa de novo.
Estende o pescoço do doente, ajeita a máscara de oxigênio o melhor que pode e comenta com a enfermeira que ela demorou. Pergunta outra coisa, mas quem responde é um homem magro e alto que maneja, junto à porta, um carrinho enferrujado repleto de pacotes e frascos.
Trabalho no estoque, diz ele, em resposta ao olhar incrédulo do médico, e quero ajudar, diz para angariar confiança.
A “hora da zona morta” é assim. Tudo pode acontecer.
O médico mira o quase-morto que agoniza. Como? e os ombros caídos são uma admissão de derrota.
Tente mais uma vez, doutor. Dessa vez vai dar certo.
O médico sente o mesmo arrepio, mais forte, porque o corpo todo estremece. Fixa um olhar pasmo no homem do estoque. O homem apenas devolve um sorriso de incentivo com movimentos afirmativos da cabeça e uma cânula lacrada na mão.
A atenção do médico se volta ao doente. Troca de luvas. Debruça-se sobre a cabeça dele. Penetra a cavidade; desvia-se de dentes, falsos vãos e pregas. A cânula não apenas entra; ela desliza macia garganta abaixo, como se tivesse sido projetada para aquelas entranhas. E, acreditem, é uma oito e meio, pois estamos na “hora da zona morta”.
O oxigênio nos pulmões traz vida. A pele agora é rósea, seca e quente. Nada bipa, nada brilha, nada pisca. Sono tranquilo. Doze por oito.
A enfermeira retorna esbaforida através da porta que dá para o centro cirúrgico com o kit da traqueostomia. Ela alterna o olhar para o doente, o brilho do monitor, e sorri. Demorou porque o estoque estava trancado. O funcionário foi para casa porque o filhinho adoeceu. Seria por pouco tempo, não faria diferença, afinal, era a “hora da zona morta”.
Você está enganada, diz o médico, olha ele ali, e vira-se para o outro lado em direção à área junto à porta de saída. Mas a porta está fechada e ali não havia mais ninguém.
A nuca se arrepia uma terceira vez.
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É por isso que, a partir do momento em que eu soube dessa história, passei a dar todos os meus plantões à noite. E sempre escolho o turno da “hora da zona morta”.
Até hoje, nada de diferente me ocorreu, mas, cada vez que eu me paramento para enfrentar uma nova “hora da zona morta”, sempre tenho a esperança de viver graça semelhante.