O Pesadelo de Alice

Aquele tinha sido realmente um dia ruim. Não que Alice tivesse dias bons ultimamente, mas esse tinha quebrado todos os recordes. O sol brilhava com força, esquentando o ar até fazer as pessoas sentir-se cozinhar aos poucos, como se estivessem todos dentro de uma panela ao banho maria. Ela durou a manhã inteira entregando currículos, um após o outro, em todos os lugares que tinha préviamente selecionado. A esse ponto sabia que tinha poucas chances desse esforço todo dar em algo, que o mais provável era eles jogarem fora tudo apenas ela saía do local, mas fazer o quê? Tentar não custa nada...

Esperando o ônibus para voltar, pensando no que iria preparar para almoçar enquanto sentia a maquiagem escorrendo pelo rosto suado, percebeu que a sola da sandália estava quase descolada. Maravilha. E ainda por cima o ônibus passou sem se dignar parar, mesmo que não estivesse tão lotado de gente.

Ao chegar à casa, a luz tinha ido embora - de novo - e ela não tinha feito compras. Ou seja, esquece alguma coisa decente para comer. Pegou o miojo de emergência que guardava no fundo da despensa, e o cozinhou rapidamente. Depois sentou-se frente ao computador, aproveitando que tinha a bateria cheia, para revisar o e-mail: quem sabe tivesse recebido alguma boa nova.

Estava decidindo o que fazer quando o computador desligasse por falta de carga, quando sua mãe ligou para contar-lhe do enésimo problema com o Paulão, o novo namorado. Pelo visto agora queria se mudar para a casa dela. Claro, sem ajudar, porque ele não tinha emprego. Alice ouvia as queixas em silêncio, revirando os olhos de vez em quando, enquanto "aham" e "nossa" saiam automâticamente da sua boca de vez em quando. Muito tempo atrás havia renunciado a dizer o que pensava. Tanto sua mãe reclamava e ficava chateada, e depois ia e fazia tudo que o namorado de turno queria.

Finalmente a mãe se calmou e desligou. Alice deu um suspiro e fechou o computador, que anunciava que o nível de bateria estava acabando. Decidiu ligar para a companhia de energia para reclamar, aproveitando que ainda havia luz do dia. Talvez eles decidissem vir consertar o problema antes do escurecer. Provavelmente os vizinhos já tinham ligado, mas uma pessoa mais reclamando talvez exerce pressão. Depois de tudo eles se promocionam como a "MELHOR COMPANHIA DE LUZ DA CIDADE".

Depois de reclamar (e reclamou bastante), Alice sentou-se no sofá e tentou não prestar atenção àquele nó que sentia no meio da garganta, que lhe amargava até o centro do peito. Quando estava assim não sabia se era melhor chorar ou não chorar. Claro que aliviaria a tristeza, mas afinal, quando as pessoas crescem o choro não serve mais de nada. Ninguém vai vir resolver seu problema, como fazem as mães apenas o neném chora. Você só fica com os olhos vermelhos e ardentes. E a sua vida segue exatamente da mesma forma.

Alice abriu os olhos. A escuridão entrava pela janela da cozinha, creando sombras atrás da geladeira e entre os móveis. A sala estava cada vez mais cinzenta, enquanto a luz do dia se escondia atrás da curva terrestre. Ela não soube o que aconteceu. Tinha chorado? Havia dormido? Da ultima coisa que se lembrava era da amargura que lhe pesava dentro, e que pensava em como chorar não resolvia nada. Piscou um par de vezes, e uma parte da sua mente lhe avisou que alguma coisa estava diferente. Tratou de se levantar do sofá, e descobriu que seus braços e pernas pesavam demais. Não conseguia mexer as mãos, que formigavam. Ela piscou mais uma vez, e viu luzinhas de várias cores ao redor, como as estrelinhas dos desenhos quando o Jerry batia no Tom. Olhou para as mãos, e tentou gritar. Mas o grito não saiu da sua boca, que não se abriu. Suas mãos estavam com as palmas abertas, os dedos fechados, e estava usando luvas pretas, compridas até os cotovelos. Os braços pesavam porque estavam envolvidos em uma espécie de tecido pesado, grosso, duro. Olhou para as pernas, e viu que o tecido envolvia-as até o joelho, formando uma espécie de saia apertada, que não dava lugar ao movimento. Seus pés calcavam umas botas pretas de sola grossa, que pareciam feitas de pregos, todas pontudas e horríveis. Estava amarrada ao sofá, mesmo que ela não conseguisse ver correntes ou cordas, e sua boca tinha sido costurada, mas não lhe doía. Esbugalhou os olhos, o pânico a invadir todo o seu ser. De um momento a outro a luz se acendeu, mas não havia ninguém junto com ela. A luz brilhou forte, machucando-lhe os olhos, mas não conseguiu fechá-los. Não podia se mover. Não podia gritar. Estava à mercê do que quer que fosse que estivesse ali, à mercê de quem quer que estivesse fazendo isso com ela.

O celular tocou, e o barulho quebrou o silêncio de uma forma tão repentina que seu coração deu um pulo. Olhou para o aparelho, que tinha deixado na mesinha ao lado do sofá, mas quando quis esticar a mão para pegá-lo sentiu como um par de dedos a apertar-lhe o braço. Parecia o beliscar de um pregador de roupas. A luva apertou forte seus dedos, e ela pensou que devia estar sonhando. O celular ainda tocava, insistente, uma e outra vez. A pessoa que ligava não se rendia. Com certeza que era um sonho! Ela nunca recebia ligações assim. O pensamento pareceu calmá-la um pouco. Dane-se, se disse, é um pesadelo absurdo, vou acordar mais cedo ou mais tarde.

O tempo passava. A escuridão lá fora era total, mas a sala brilhava como se o Sol tivesse entrado aí depois de se pôr no céu. As roupas a apertavam cada vez mais, e Alice sentia-se afundar no sofá. Na verdade, ele estava engolindo-a. Sentia as almofadas ficar mais moles, o tecido ao seu redor cedendo, misturando-se com as roupas, enredando-se nos pregos das botas. Os fios que lhe fechavam a boca se derretiam, e volviam a se formar junto com as fibras de poliéster do recheio do sofá. Ela não conseguia respirar. Tratou desesperadamente de se mexer, de gritar, de ACORDAR, mas nada funcionou. Sentia a estrutura do sofá mover-se, como se estivesse vivo, uma boca de tecido e recheio que a engolia e começava a mastigá-la.

O ultimo pensamento de Alice, antes de desaparecer no buraco infinito que se escondia no que tinha sido um comuníssimo sofá, foi que isso tudo era um pesadelo, e estava esperando acordar. O peso das suas roupas-ataduras a empurrou dentro da escuridão do buraco. Alice desapareceu.

A vizinha bateu na porta duas vezes. Queria avisar-lhe que a luz tinha voltado. Mas não houve nenhuma resposta.

"Deve estar dormindo" pensou. "Depois eles querem arranjar emprego, só ficando em casa a fazer nada..." Meneando a cabeça com desaprovação, dona Melissa foi fazer o jantar.

Viviana Carolina
Enviado por Viviana Carolina em 02/04/2017
Código do texto: T5959216
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