O anfitrião

O ANFITRIÃO

Miguel Carqueija


A súbita e estranhamente violenta borrasca obrigou-me a buscar abrigo, e só havia uma casa próxima à estrada, sobre uma colina inóspita e rebarbativa, para onde eu corri lutando contra um vento atroz, apertando o capote em torno do corpo. Era uma casa velha porém de paredes sólidas, capaz de resistir galhardamente aos embates das procelas, mas a eletricidade atmosférica era muita e apressei-me a bater na porta de carvalho, temeroso das descargas.
Atendeu um velho de sombrio e anacrônico traje, um homem enrugado e de porte altivo, idoso sim mas de coluna ereta, a quem tratei de me apresentar para tranqüilizá-lo, mostrando minha identidade:
— Sou um professor, o meu carro enguiçou, só consegui deixá-lo lá no acostamento...
— O senhor conseguiu chamar socorro?
— Agora está difícil, com a tempestade... não consigo chamar pelo celular...
— Celulares... coisas novas... — murmurou ele, e fez sinal para que eu entrasse. — Bem, ainda há um quarto com cama... talvez o senhor deva passar a noite aqui, amanhã será outro dia...
Não pude declinar o convite. Naquele mesmo instante um clarão lucipotente, precursor de terrível trovão, como que gerou um dia microtemporal à nossa volta, antes que as trevas nos abarcassem de novo; e não era prudente permanecer ali fora.
Acompanhei-o por um corredor escuro e mofento, e meu anfitrião à guisa de luz apenas empunhava um castiçal. Entramos afinal num quarto, ocupado por móveis antigos, cobertos de panos empoeirados, a cama... e um grande retrato pintado na parede.
Era o retrato daquele senhor, sem tirar nem por. Na fraca luz do castiçal, que ele colocara sobre uma mesinha, pude constatar, admirado, o quanto a pintura estava gasta pelos anos.
Perplexo, voltei-me para aquele homem que me conduzira até ali.
E ele não estava mais lá... não havia ninguém naquela casa.



imagem pixabay
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 09/09/2017
Reeditado em 09/09/2017
Código do texto: T6109636
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