Mesmice

Mesmice

O dia amanheceu como os milhares de outros dias de minha vida. Nada parecia indicar que algo inusitado iria acontecer hoje. Acordei e permaneci na cama, como de costume. Espreguicei, estendendo braços e pernas ao mesmo tempo em que emiti um grunhido exagerado, parecido com um gemido de dor fingida, como de costume.

Minha mulher acordou assustada e, embora habituada com aquele ritual ridículo (Ela me conhece!), perguntou, mal-humorada:

— Está ficando louco ou só treinando para ser palhaço?

— Liga não, minha filha, pode continuar dormindo — respondi com ironia enquanto continuava a me espreguiçar. Nem passava por minha cabeça a possibilidade de acrescenta-la à minha lista maldita, já que durante toda aquela semana eu vinha ruminando a raiva que estava sentindo por desconhecidos e até por amigos e parentes. Não eram muitos, é verdade, mas a cada dia que passava aumentava mais o rol dos meus desafetos. Por alguns segundos cada um daqueles desgraçados me veio à lembrança. Roguei uma praga pra cada um deles e dei o assunto por encerrado, voltando pros meus lençóis.

O sono estava uma maravilha e eu sentia uma satisfação enorme em me entregar àquela letargia típica do estado intermediário entre o dormir e o despertar. Resisti bravamente à tentação de voltar a mergulhar no sono profundo de um lado e, do outro, à de acordar completamente. O problema é que eu estava com muita fome e, da cozinha, vinha um aroma irresistível de café fresquinho. Como o café é uma de minhas fraquezas gastronômicas, estava decidido: hora de levantar. Ponderei, contudo, que para tomar aquele café ainda tinha que escovar os dentes e, assim, fui comandado a executar essa tarefa, como resultado de um processo racional efetuado por uma mente entorpecida pelo sono, e nada confiável.

Lembro claramente (não entendo como minha memória foi capaz de tal proeza!) que me levantei, qual autômato teleguiado, dirigi-me ao banheiro onde, escova de dentes em punho, deparei-me com o que deveria ser minha própria imagem refletida no espelho. Não era. Estava lá uma imagem que, embora guardando alguma semelhança comigo, apresentava vários aspectos que eu desconhecia completamente e, com absoluta certeza, não estavam presentes em mim. Movido pelo susto, sem entender bem o que estava acontecendo, falei para mim mesmo em voz alta: “o que será que está acontecendo com este espelho?”. Na verdade a pergunta foi apenas um disfarce mal arrumado para a pergunta correta e que deveria ser dirigida ao espelho: “quem é você?”. Mas não tive coragem. Preferi disfarçar.

— Seu espelho está ótimo — retrucou a imagem.

Ainda incrédulo, fiz uma careta mostrando a língua, mas a imagem permaneceu impassível. Estirei-lhe o dedo médio, num gesto obsceno e ela respondeu com um ar de reprovação, balançando vagarosamente a cabeça de um lado para o outro.

Convencido, embora atônito, perguntei:

— Me diga uma coisa: existe alguma relação ou semelhança entre você e a barata de Kafka?

— Mas que petulante que você é, hein?

— Petulante... eu? Não entendo por quê.

— Ora, ora! Em outras palavras, mas pelas mesmas vias de seu raciocínio, você quis dizer que se eu sou a barata, você é o próprio Kafka. Criatura e criador, entendeu?

— Mas isso não me passou pela cabeça...pelo menos não conscientemente — disse com veemência, sentindo-me acuado como um réu em um tribunal, sem defesa.

— Você devia ter deixado Kafka em paz e ter se aconselhado com Freud. Era mais apropriado para seu caso, entendeu?

— Além de especialista em psicanálise, você também gosta de chutar cachorro morto, né? Tem mais alguma coisa pra me dizer?

Nenhuma resposta. Silêncio total.

— Tem ou não tem?

Nada! Nem um som se fez ouvir.

— Você ainda está aí?

Com ambas as mãos fiz um gesto circular, como se estivesse limpando o espelho. A imagem refletiu meu gesto com sincronia perfeita.

— Você ainda está aí? Repeti mais alto dessa vez.

— Ficou louco de uma vez ou agora é o ensaio geral do palhaço?

Virei-me bruscamente e deparei-me com minha mulher, ambas as mãos nos quadris, rindo às gargalhadas. “A gente vê cada uma” — murmurou ao se recuperar da crise de riso, enquanto voltava para o quarto.

Botei pasta na escova e dei uma bela escovada nos dentes. Da cozinha chegava

um aroma agradável de café...e o dia seguiu normalmente, como todos os outros milhares de dias de minha vida.

Guilherme Cantidio

Julho/2009