Humano voador

Era uma ladeira íngreme, tínhamos que cumprir um ciclo punitivo que nos obrigava a repetição. O cansaço nos abatia sempre que o percurso era vencido, por algum motivo subíamos para depois ter que descer, respeitando procedimentos de estranho ritual, mas não consigo lembrar do que se tratava.

Já não aguentava mais aquela atividade monótona e resolvi inovar. Depois de experimentar com sucesso pequenos rasantes através do esforço doloroso dos músculos da panturrilha e dos pés, comecei a flutuar pela ladeira, enquanto outros seguiam suas trilhas de cansaço e sofrimentos, sem se importarem com meu estranho progresso diante de seus olhos indiferentes, tal fenômeno me deixava maravilhado a cada desenvolvimento adquirido e do potencial escondido em plena manifestação. Num salto controlado, onde concentrei força na região dos pés, consegui subir alto. De cima me via lá embaixo e de baixo me enxergava lá em cima, sentia inveja do eu que voava e pena extrema do "eu" que rastejam naquela ladeira de sofrimento. Esquecendo do eu fraco, que ficou ou (fiquei) pra trás, resolvi sair dali, senti-me autorizado à explorar céus mais atos. Concentrando força nos músculos das costas avancei até atravessar uma densa nuvem de tempestade. Escuridão envolveu-me e o medo tirou minhas forças. Comecei a cair vertiginosamente numa espécie de redemoinho, não via fundo nem céu, apenas caía.

Durante a queda, comecei a recordar as conquistas e as facilidades motoras que havia conquistado e o temor logo passou. Em seguida, intensa claridade envolveu meus olhos, uma luz vinda do sol que iluminou a paisagem vista do alto... era Porto Alegre, pude vê-la radiante, envolvida num brilho plástico como cristal exposto a intensa luz. Voava sobre a cidade experimentando sensações de bem-estar indescritíveis. Até que o despertador "cortar meu barato". Acordei com a luz do sol no rosto, corpo todo dolorido, principalmente nas pernas e nos pés.