O Tango Argentino

Um sol de rachar. Roupas extremamente quentes. Bruno nem tinha um guarda chuva ou um boné para se proteger do sol. Caminhava pela avenida a passos largos, com meia dúzia de livros debaixo do braço, fazendo esforço para não desmaiar naquele calor insuportável. Estava de calça jeans e uma blusa três quartos. Tirou os óculos de grau e enxugou a testa com as costas das mãos.

“Você vai se dar bem na capital, querido” dizia sua vó. E ainda dizem que as avós sabem de tudo! Lugarzinho feio este, pensava ele. Depois da formatura me mando daqui.

Bruno chegou na sua quadra e avistou uma velhinha vindo em sua direção, carregava frutas num carrinho, mas vinha andando com dificuldade. A velhinha deixou o carrinho tombar para o lado e o tomate e o mamão rolaram na calçada. Bruno abaixou-se e ajudou a pobre senhora. Ela sorriu, disse “muito obrigado” e estancou.

Os dois ficaram parados olhando um para o outro. Para Bruno, pareceu uma eternidade.

- Eu não conheço você? - perguntou a velhinha, ajeitando os óculos fundo de garrafa. O chapéu que usava fazia sombra em seu rosto.

- Acredito que não – respondeu Bruno. - Eu me mudei mês passado para esta rua. Ainda não conheço os vizinhos.

-Qual seu nome, meu filho? - perguntou a velha, que para Bruno parecia ter 180 anos e cheiro de uma idosa de 180 anos.

-Bruno – respondeu o jovem, após devolver o mamão ao carrinho.

-Hummm. Acho que não conheço você – ponderou a velha.

-Não mesmo.

Bruno foi andando em direção a sua casa.

- Espere Bruto – disse a velha, errando o nome do garoto.

Ela olhou-o nos olhos.

- Vai chover, filho.

Bruno abaixou um pouco os olhos e fitou a mulher por cima dos óculos. “Velha doida”, pensou.

- Será? - disse ele, no entanto.

-Sim. Daqui a pouco vai cair um toró.

Bruno olhou em direção ao sol, quase fica cego.

- Se chover hoje eu danço tango argentino na lua, vovó – disse ele, com um sorriso irônico.

A velha ficou seria de repente. Bruno já estava inventando uma desculpa para a píada sem graça quando ela caiu na gargalhada.

- Cuidado com suas promessas meu filho – disse ela em tom zombeteiro. - Um homem de verdade costuma cumprí-las.

- Eu digo que danço tango argentino se chover e vou cumprir a promessa. Mas se chover, é claro.

A velha sorriu novamente, os olhos semicerrados nos oculinhos de grau.

- Está bem. Como queira.

A velha seguiu seu caminho, puxando o carrinho de compras. Assim que ela dobrou a esquina, o primeiro pingo caiu. Mais um e mais um. Antes que Bruno pudesse abrir a porta chovia cântaros. Todos os livros dele molharam. Ele olhou para trás e ficou perplexo.

Pensou: “pura coincidencia a vovó acertar que fosse chover”.

Sorriu sem graça. “Nenhuma chance de dançar na lua”, disse ele enquanto trancava a porta.

Choveu a noite toda. A chuva não parava. De manhã ainda estava chovendo.

Bruno ficou feliz que não tinha sol, mas não parava de chover. Ele vestiu sua capa de chuva, suas botas e saiu. Chovia como se São Pedro tivesse aberto as torneiras do céu, todas as 777 .

Ele então foi andando até o ponto de ônibus. Não havia onibus. Um alagamento atrapalhava a passagem num determinado ponto. Ele então pensou em voltar, mas era uma aula sobre Antropologia, o professor não liberava ninguém, mesmo se o sol explodisse e o universo fosse engolido por um buraco negro.

Ele procurou um táxi, não encontrou nenhum. A falta de ônibus lotara todos os táxis. Foi a pé, procurando lugares onde pudesse se abrigar da chuva.

Choveu a manhã toda e não havia sinal de que fosse parar. No intervalo Bruno ouviu comentários de que havia alagamentos em toda a periferia da cidade. Alguns moradores foram para abrigos, levados pela Defesa Civil.

A chuva continuou forte até no final da tarde, reduziu e parecia que ia parar, mas ficou forte novamente.

Bruno decidiu ir ao mercado comprar pão. Vestiu novamente a capa de chuva e saiu, pisando nas poças de água. Morava no centro, e já estava tudo alagado.

Ele comprou os pães e levou yogurte.

Na fila do caixa encontrou a velhinha do dia anterior, tentou falar com ela, mas a velha não ouviu ele chamar.

Do lado de fora do mercado Bruno alcançou a velha e disse:

- A senhora falou que ia chover e está chovendo!

- E quem é você, meu filho? - perguntou ela.

- Sou o rapaz de ontem, que ajudou a senhora com as compras!

A velha arregalou os olhos e disse:

- Bruto?

- Bruno – corrigiu. - Meu nome é Bruno.

- Claro que lembro – disse a velha, sorrindo. - Como eu poderia me esquecer da sua promessa!

- Que promessa?

- Você disse que iria dançar na lua se chovesse.

- Eu disse?

Breve silêncio.

- Ah sim – exclamou Bruno. - Eu disse mesmo, mas foi brincadeira.

Os dois ficaram olhando um pro outro. A velha fechou a cara.

- Mas me diga – falou Bruno. - Essa chuva não vai embora?

- Eu não sei – respondeu a velha. - Não sou Deus.

- Mas a senhora adivinhou que iria chover!

- Sim, claro. Mas ai é outra coisa. Não depende de mim a chuva ir embora.

Bruno não queria perguntar. Enfim perguntou:

- Depende de quem?

- De você – respondeu a velha, os olhos brilhando.

- A senhora não tá falando serio!

- Claro que estou. E você deve cumprir sua palavra. Afinal, a palavra de um homem deve ser cumprida, pois homens são homens!

Bruno ia sorrir, mas a velha estava seria. Ele tinha feito uma píada apenas, não iria cumprir a promessa de dançar tango argentino na lua. Nem sequer era astronauta.

Então ele percebeu que estava acreditando em algo que não era para se acreditar: que a velha predissera o futuro ou fizera chover com suas próprias mãos.

Ele ia chamar a velha de doida, mas perguntou:

- E se eu me recusar a dançar tango na lua, o que acontece?

A velha ajeitou a sacola de compras no ombro e disse:

- Então vai chover para sempre meu filho.

- A senhora é alguma bruxa? - perguntou Bruno, sem hesitar.

A velha saiu, ofendida, resmungando coisas.

Bruno atalhou-a.

- Se isto for verdade – falou ele -, pode acontecer um diluvio. Eu não posso dançar….

- Dê seu jeito – interrompeu a velha, seguindo seu caminho.

Ela apressou os passos, mas mesmo assim era como se carregasse toneladas nas costas.

A chuva caia pesada e contínua. Não havia sinal de que o sol surgiria um dia.

Bruno foi para casa. Entrou e descalçou as botas, retirou a capa de chuva e se jogou no sofá.

Adormeceu e teve um sonho.

Era dia, e não estava chovendo, o sol estava alto no céu.

Bruno estava parado em frente a um imenso navio, no porto. Mas já não era um navio, era uma arca. Havia animais subindo, em pares.

Um homem barbudo, de óculos escuros á la John Lennon, vestindo um casaco maior que seu tamanho, chegou próximo a ele e disse:

- Vai acontecer um dilúvio. Não era em fogo que tudo ia terminar?

- A forma não importa quando tudo tem que acabar – falou Bruno, reparando num casal de hienas que subia na arca.

- Você caiu também né! - disse o homem.

Bruno olhou o homem de cima a baixo. Cheirava mal. Tinha a aparência de um mendigo que acabara de encher a cara.

- Quem é você? O que está fazendo no meu sonho? - perguntou Bruno.

- Hoje não sou ninguém - respondeu o homem. - Mas meu nome é Bartolomeu. Eu também passei por isso que você está passando.

Bruno se empertigou.

- Tambem fez uma promessa e não cumpriu?

- Sim. Aquela mulher não vai parar até você dançar.

- Isto vai ser impossível!

- Talvez – falou o homem. - Mas ela não se importa.

- E posso saber quem é ela?

O homem retirou um cigarro do casaco e o acendeu. Soltou uma baforada e disse:

- Ela era uma deusa!

- Uma deusa? - surpreendeu-se Bruno. - E porque “era” e não “é”? não sabia que deuses deixavam de ser deuses.

O homem soltou outra baforada e disse:

- Aconteceu uma coisa com ela.

- Por que não me diz logo o que aconteceu? – chateou-se Bruno. - Não faça rodeios!

- Bom – disse o homem. - O sonho é seu, tem o direito de querer logo as respostas. Então ouça com atenção:

“A velha chama-se Calíbades, era a deusa da juventude. Ela era uma linda deusa que morava com sua irmã gemea, a deusa da velhice, Calíbadas. As duas viviam em pé de guerra, pois enquanto Calíbades era a deusa da juventude, bela e jovem, Calíbadas era a deusa da velhice, feia e velha. Os homens rezavam por juventude e amaldiçoavam a velhice, enfurecendo Calíbadas. Ela então armou um plano. Ofereceu muito dinheiro a um certo jovem para cortejar Calíbades e fazê-la apaixonar-se por ele. A deusa da juventude caiu direitinho nos planos maléficos da irmã e se apaixonou perdidamente”

“Calíbadas ordenou que este jovem propusesse casamento a sua irmã, com a condição de que ela deveria abdicar de sua beleza e juventude para sempre. A deusa, loucamente apaixonada, anuiu e aos poucos deixou de ser bela e jovem, ganhando a aparência de uma velha enrugada e feia. É claro que o jovem pulou fora, afinal era apenas um plano. A fúria de Calíbades caiu sobre ele e ela não hesitou em lançar-lhe um feitiço. O jovem tornou-se imortal, e você pode pensar que isto foi uma coisa boa, mas o detalhe terrível dessa história é que Calíbades o condenou a nunca sentir prazer nos braços de um mulher, e nenhuma mulher pôde jamais dr apaixonar por ele”

Calíbades entristeceu-se e caiu em desgraça

Tomada por fúria, tem vagado pela Terra desde então, perseguindo e punindo os homens que lhe fazem promessas e não as cumpre”.

Bruno ouviu tudo com atenção e disse:

- Interessante. Mas quem é o senhor mesmo?

- Eu sou o jovem que mentiu para Calíbades.

Bruno ensaiou um sorriso irônico. Conteve-se.

- Eu ia perguntar como faço para sair dessa enrascada, mas acho que o senhor não vai saber o que fazer não é?

O homem deu outra tragada e jogou a bituca no chão, pisou-a com a sola gasta do sapato.

- Claro que sei – disse ele. - Basta cumprir o que você prometeu. Assim, quando Calíbades ver que um homem pode cumprir suas promessas, a maldição que caiu sobre mim será desfeita e eu terei prazer nos braços de uma mulher. Já são séculos sem fazer aquilo, você sabe do que estou falando. Não posso mais suportar essa condição. Sem falar que vai parar de chover também. Ou seja, todo mundo ganha.

- Tá de brincadeira? – falou Bruno. - Como vou dançar tango argentino na lua?

- Vá até a lua, ora - falou o homem. - Faça como os americanos, invente alguma coisa!

- Não é esse o problema. Se fosse isto seria fácil.

- E qual é o problema, rapaz?

Bruno olhou para os lados, envergonhado. Então falou:

- É que não sei dançar tango argentino!

Regi Ferreira
Enviado por Regi Ferreira em 18/01/2018
Código do texto: T6229145
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