TRIBUTO A CLARICE

Naquela casa de portas azuis desceu um anjo sem asas. Trazia um livro na mão direita e na mão esquerda uma chave prateada. Não lhe indicaram um lugar, por isso ficou no ar, ao sabor do vento. Depois, guardou a chave no bolso, abriu o livro, e com uma voz macia e pausada começou a ler. Porém a sua leitura era diferente: ele lia entre as linhas das folhas do livro e ao final da página esta desaparecia. Os ouvintes, sem entender o que o anjo falava, tiveram a intuição de perceber que ao terminar a leitura algo extraordinário iria acontecer. Isto porque durante a estranha leitura a terra girava para trás e todos podiam se contemplar acompanhando suas vidas desde o nascimento até aquele momento insólito e surreal. Então coisas fantásticas começaram a ocorrer. Um ancião de barba longa, branca, hirsuta, descobriu que há vinte anos não beijava a sua mulher e pediu perdão chorando como uma criança. Um famoso político compareceu despido para uma entrevista e ninguém notou a sua nudez. Uma mulher respeitável escreveu com sangue um cartaz em letras garrafais que dizia: PUTAS DO MUNDO UNÍ-VOS! Dois países em guerra resolveram fazer as pazes. Porém, o que chamou mais a atenção do anjo foi a presença de um menino que apesar da pouca idade entendia perfeitamente o que estava ouvindo, mesmo vindo de coisas que não estavam escritas. O anjo sem asas desceu do vento e sentou-se ao lado dele. Restava um quarto do total de folhas para ser lidas. Enquanto os adultos não tiravam os olhos de seus celulares, onde suas vidas eram retratadas, o menino fitava embevecido o livro cada vez mais fino.

─ O que vai acontecer quando terminar de ler? Perguntou ele com ar sério e apreensivo.

─ Gostaria de saber para dizer-lhe, mas só quando chegar à última folha é que eu terei as instruções que foram dadas pelo autor do livro.

─ E quem é o autor? Indagou o menino.

─ Também não sei. Chegou-me às mãos juntamente com uma carta anônima. Pelo perfume e pela letra acho que era de uma mulher. Estranhei o livro sem título, sem indicação da autoria, apenas textos e mais textos os quais devorei num instante. A carta orientava-me a descer em uma casa de portas azuis com uma grande mangueira no quintal e habitada por um garoto e seus pais. Dizia também para ler apenas entre as linhas, pois só assim as pessoas poderiam ser despertadas. Deu-me também uma chave para usá-la para abrir a passagem.

─ Passagem para onde?

─ Também não sei. Afinal tudo está no livro. Preciso chegar à última página.

Por compreender o que o anjo dizia o menino encheu os olhos de lágrimas tomando as dores do mundo, e especificamente a dos seus pais, amigos e vizinhos. Aquele homem que fazia o mundo girar tinha uma chave para abrir uma passagem. Decerto aquilo era a salvação daqueles que pudessem entender, como ele, as verdades reveladas por trás das palavras. Imediatamente sentiu vontade de correr ao encontro do pai e alertá-lo quanto às expectativas, entretanto ao se levantar sentiu a mão forte do anjo sobre o seu ombro, imobilizando-o completamente.

─ Não se preocupe com os seus parentes. Todos estão ouvindo a minha voz e terão chance de escolher os seus destinos. Cada um é responsável por si. Não estrague o mistério da vida.

Ao se aproximar da última folha todos os ouvintes largaram seus celulares e voltaram seus olhos para o lugar de onde vinha a voz do anjo, tentando entender suas palavras. Alguns tomando consciência das verdades reveladas prostraram-se de joelhos diante do primeiro altar que encontravam. Outros caíram na gargalhada diante da insensatez de suas existências. Na última página o anjo deu um longo suspiro e olhou para o garoto que permanecera sentado ao seu lado e disse:

─ Finalmente chegamos ao fim.

─ O que está escrito ─ perguntou o menino.

─ Veja você mesmo! Disse o anjo entregando-lhe a página.

Ao tocar no papel este se iluminou. Uma luz branca foi se ampliando em ondas cobrindo toda a terra, que se transformou em um gigantesco ovo. Todo o restante do universo havia desaparecido e no meio da folha apareceu uma fechadura prateada. O menino procurou o anjo, mas este se diluíra na intensa luminosidade. No seu lugar ele viu apenas a chave prateada. Resoluto segurou o objeto e introduziu no buraco da fechadura. No mesmo instante a luz desapareceu e ele se viu no centro de uma gigantesca biblioteca. Uma mulher vestida de branco o esperava. Sorrindo veio ao seu encontro e disse:

─ Bem-vindo ao ovo da galinha. Meu nome é Clarice.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 07/02/2018
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