Aberto Para Reformas

Então, resolvi ir visitá-la em sua casa. Disse que a porta estaria aberta, que era só entrar.

Enfim, cheguei ao local.

A fachada era de uma pintura mal feita; havia rachaduras por onde se via a cor original, mas de longe ninguém avistaria defeitos. Mais pareciam cicatrizes na parede.

Entrei.

Por dentro, móveis todos fixos. Mesa fixada à parede, os pés das cadeiras, camas e sofás fixados ao chão, janelas trancadas, quadros pregados ao invés de simplesmente pendurados. Tudo parecia ser frágil demais pra ser mudado de lugar.

Numa dispensa com portas de vidro, não havia muita variedade, porém muito em quantidades. Parecia que sempre era servida a mesma refeição e jamais haveria surpresa de faltar algum ingrediente.

Na sala havia alguém. Era ela, receptiva e sorridente como sempre. Mas havia algo de estranho com ela. Alguma coisa no ambiente, no ar, causava certa sensação de angústia. Reparei que havia algo de estranho em sua pele, estava fosca, como se a luz não refletisse por ela.

Minha curiosidade causou um nervosismo nítido, ela se movia desordenadamente e acabou por me deixar perceber um olhar apreensivo para uma porta no chão embaixo da escada, que talvez desse a um sótão ou algo do tipo.

Com passos curtos e disfarçados eu chegava mais perto da pequena porta. Quanto mais perto eu chegava, mais nervosa ela ficava e mais apagada sua pele parecia.

Era nítido agora. Ela estava desaparecendo. Como um holograma ela piscava e reaparecia, sem energia para se manter acesa. Pedia pra que eu voltasse pra perto dela, mas seus olhos diziam o contrário. Me abaixei e coloquei a mão na maçaneta da porta e ela se tornou apenas uma sombra. Abri e ela sumiu. Mas não me desesperei, aquilo não podia ser ela de verdade. Havia uma escada longa e empoeirada e ao fim, uma lâmpada de luz branca iluminava o local. Desci degrau por degrau acabei em um cômodo vazio e pequeno, com paredes todas brancas. Num dos cantos, estava ela. Sentada, nua e assustada.

Antes que eu chegasse perto, se explicou:

- Optei pela lâmpada porque tenho do escuro, mas foi só isso.

Fui até ela pra tirá-la daquele lugar estranho. Ao tocar em seu braço pra levantá-la, senti medo, culpa, arrependimento, dor, confusão; senti tudo que ela tinha dentro de si. Carreguei-a e tirei-a dali às pressas.

No térreo deitei-a no sofá, tentando entender o que acontecia. Ela apenas disse que não sabia viver na parte de cima da casa, fechava os olhos com força e tentava fazer reaparecer a outra versão de si mesma com quem me encontrei a primeira vez, sem sucesso.

Entendi o que ela precisava. Vesti-lhe, desprendi os móveis do chão e paredes, trouxe alimentos diferentes para que provasse. Com olhar curioso aceitou com receio tudo que lhe apresentava, aprendeu a escolher por si mesma.

Como uma criança aprendendo a viver, reaprendeu a andar sozinha, começou a remobiliar sua casa, abrir suas janelas e deixar que novos ares entrassem.

Com muita dificuldade aprendeu a dizer “não”. E a primeira vez que disse “não” foi quando tentei ir embora. Me fez ficar e morar ali, disse que também queria aprender a amar comigo.

Hoje vivemos juntas e vejo todos os dias quando ela descasca aos poucos a tinta da parede da fachada, mostrando a cor original. Ainda falta muito, mas estarei aqui quando ela terminar e estiver plena para repintar.