O QUINTAL E O LIXO (HERÓI)

- Não existe nenhum acordo ou hierarquia entre cachorros de rua, normalmente quem manda é o mais forte ou o mais corajoso e geralmente o mais corajoso é o que tem mais fome.

- Senti o cheiro forte de comida vindo diretamente daquele saco de lixo esquecido no vão entre o poste e o muro, olhei para os lados e me aproximei cauteloso. Quando encostei o focinho senti os dentes finos e pulei para trás assustado com o barulho que aquele pequeno vira lata fez. Não havia visto o filhote atrás do saco de lixo, ele o tinha achado primeiro então julgava que era somente seu. O cachorrinho rosnava olhando furioso para mim enquanto comia. Era muito pequeno ainda, eu tinha quatro vezes o seu tamanho, mas como eu disse, manda quem tem mais fome.

- O filhote comia como se fosse a primeira vez, engolia tudo com muita pressa. Eu já havia passado por aquilo algumas vezes. O pequeno cachorro devia ter andado atrás de comida o dia todo e agora que encontrou imaginava que a qualquer momento um outro cão ou um humano poderia tirar seu prêmio. Me afastei, deitei e baixei as orelhas para deixa-lo mais tranquilo.

- Em pouco tempo o cãozinho se acalmou e passou a comer mais devagar, rejeitava algumas coisas, aquela fome aguda havia passado. Agora ele farejava em volta do saco de lixo, com certeza procurando água. O nosso instinto ajuda a sobreviver e nôs defende em muitas situações, mas ao mesmo tempo ele imprime hábitos que demoramos a esquecer. O pequeno certamente havia morado em uma casa. Todas as manhãs os humanos que nôs hospedam colocam nossa comida e ao lado uma vasilha com água, era essa água que ele instintivamente procurava ao lado do saco de lixo.

Quando era pequeno e fui pra rua senti muita falta dessa água, chegava a levar pedaços de comida que encontrava para perto de poças de água somente para ter a sensação de que estava em uma casa, eu comia depois virava e tomava a água, bobagem... Na verdade eu não queria voltar a morar em uma casa, a unica coisa boa era a água, e a comida, as vezes brincar com os humanos também era bom, ter um canto quente para dormir era muito bom, mas eu não conseguiria mais. Ficar preso em um quintal andando pra lá e pra cá, latindo com quem passa para chamar atenção, a vida toda sem fazer nada, esperando os humanos chegarem para que te alimentem e talvez o levem para passear.

Nós cachorros de rua fazemos o que temos vontade, vamos para onde queremos ir, para onde o cheiro for mais atraente. Na verdade a nossa vontade é sempre comer, comer mais, andamos o dia inteiro atrás de comida ou eventualmente atrás de uma cadela no cio, mesmo assim a rua é bem mais interessante do que aquele quintal. Na nossa busca incessante por comida, as coisas acontecem.

- Enquanto lembrava da minha infância não notei que o filhote parou de comer e deitou-se em minha frente imitando minha posição, ele balançava levemente a cauda, queria brincar. Fingi que mordia seu focinho e o empurrei fazendo-o rolar pela calçada, ele agora estava alegre, balançava a cauda e dava pequenos saltos e latidos. Fui até o saco de lixo e fiz minha refeição sob o olhar impaciente do cachorrinho. Gostei dele, tinha tudo pra ser um bom cachorro de rua.

- Quando acabei de comer comecei a caminhar até a próxima esquina onde havia visto anteriormente um pote abandonado cheio de água da chuva, o filhote andava contente atrás de mim. La estava o pote, dei algumas lambidas e me afastei para que ele bebesse, o pequeno tinha muita sede, bebia a água com a mesma ansiedade que havia comido minutos atrás.

Eu me afastei e andei, virei a esquina e continuei andando, virei outra esquina e fui em frente.

- Ele será um bom cachorro de rua.

Gilberto Belotti
Enviado por Gilberto Belotti em 28/02/2018
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