UM DIA APÓS O OUTRO (HERÓI)

- Nada dava certo, o dia todo sem comer, os sacos de lixo cheios de papel e plástico, os bares vazios e limpos, os mendigos que ainda estavam acordados não tinham o que comer, o que dirá de sobras.

- Eu estava agora escondido em uma esquina observando um cachorro que rasgava um saco de lixo e comia o que podia, este teve a sorte que me faltou. O conteúdo do saco se espalhou pela calçada, tinha bastante comida ali. Ele era um cachorro grande, bem maior que eu e ficaria furioso se alguém como eu aparecesse para compartilhar a refeição, mas aquela era minha ultima chance de comer naquele dia. Tinha que esperar o momento certo e agir rápido.

- Depois de alguns minutos ele já tinha comido bastante e estava mais tranquilo, separava as preferências e comia devagar, em seguida agachou-se e passou a comer deitado, este era o momento. Tinha que escolher algo substancioso que eu pudesse agarrar e sair correndo, a escolha foi um pão com algo dentro. A distância era perigosa mas minha vitima estava de costas para o sanduíche. Comecei a andar silenciosamente, os olhos fixos no comilão. Estava bem próximo quando percebi que o cão parou de comer e ficou imóvel, havia percebido minha presença e antes mesmo que ele olhasse para trás abocanhei o pão e saí correndo. Sabia que ele não me perseguiria por muito tempo, cachorros de rua não deixam comida para trás. Eu estava enganado ele já tinha comido o bastante e agora queria briga. Embora tivesse as pernas mais longas ele era pesado, eu sendo mais ágil escapava por becos e vãos deixando-o para traz. A igreja era o esconderijo mais próximo, eu conhecia uma entrada oculta por uma pequena janela quebrada na parede lateral, mesmo que me visse entrando não conseguiria passar pelo vão.

- Para chegar a igreja eu teria um risco a mais, tinha que correr pela avenida em uma reta livre, isso daria uma grande vantagem ao meu inimigo que era mais veloz e aquele pão na boca dificultando minha respiração piorava ainda mais as coisas, mas ainda assim era minha melhor opção.

- Entrei por uma viela, peguei a avenida e corri como um louco, ele se aproximava rapidamente, se a janela estivesse concertada eu seria morto. Estava a poucos metros de chegar e ele a poucos centímetros do meu rabo, dei uma finta no sentido contrário, voltei e entrei no jardim da igreja, como eu previ ele se atrapalhou e escorregou no asfalto, corri e saltei para dentro da igreja. Graças a deus a janela ainda estava quebrada.

- Silêncio total, soltei o pão e sentei-me para recuperar o fôlego. Em alguns segundos meus olhos se acostumaram com a quase escuridão, procurei um canto confortável para fazer minha refeição e comi devagar e pausadamente. Passaria a noite ali mesmo, era mais seguro.

O grandalhão ia rondar por algum tempo, mas na manhã seguinte com certeza já teria ido. O piso de madeira tinha temperatura agradável e o cheiro muito bom, dormi bem aquela noite, um sono tão profundo que só acordei com o barulho do padre abrindo as grandes portas da frente da igreja.

- Era domingo, as pessoas começaram a entrar, eu estava bem escondido entre duas colunas, achei mais seguro esperar que as pessoas entrassem primeiro. Eu sairia com a missa em andamento

- Aos domingos havia musica para atrair os fiéis, instrumentos com sons agradáveis, resolvi ficar mais um pouco. Pessoas uniformizadas se agruparam em frente aos músicos, era um coral, me acomodei melhor. Começou a apresentação. Primeiro as vozes masculinas mais graves, em seguida se juntaram vozes femininas num tom médio, eu comecei a me sentir estranho, com uma espécie de entusiasmo inesperado. Num momento de clímax entraram vozes femininas mais agudas e todos cantaram juntos somados aos instrumentos, formando um conjunto perfeito.

Aquele meu sentimento cresceu se tornando irresistível, perdi o controle e comecei a uivar, eu não tinha domínio sobre aquilo, uivava alto e baixo, uivos curtos combinados com uivos longos em vários tons. Sem perceber fazia pose levantando o focinho e virando para os lados. Depois de algum tempo de performance notei que a musica havia parado e parei também minha cantoria.

- A igreja estava em silêncio, todos me olhavam, por um instante pensei que seria expulso, mas eles sorriam.

- Agora todos os domingos pela manhã tenho um compromisso, eu canto no coral da igreja. Uso uma capa combinando com a roupa dos cantores humanos e ganho comida a vontade. Mas o que eu gosto mesmo é quando a musica atinge seu ápice e eu, querendo ou não, executo meu solo canino.

- Letreiro colocado na faxada da igreja -

"TODOS OS DOMINGOS MISSA MATINAL COM ORQUESTRA E CORAL...... ........PARTICIPAÇÃO ESPECIAL DE 'MASCOTE' O CÃO CANTOR"

Gilberto Belotti
Enviado por Gilberto Belotti em 02/03/2018
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