Contos de pós morte (2)

Crônicas de pós morte (2)

Os três chegaram quase simultaneamente. Dois homens e uma mulher. A princípio desconcertados, vendo no vale a multidão que cantava e se divertia.

Eu estava sentado na grama, numa colina, escutando Pink Floyd e observando os que chegam. É muito divertido ver suas caras espantadas.

O maior, um negro bonito chegou para mim perguntando agressivo: - onde estamos?

- No paraíso, respondi.

- Como assim, paraíso? E aquela multidão cantando? Posso ver daqui, tem homens, mulheres, negros, brancos, tudo misturado.

- Que bom que você notou, aqui não temos mais desigualdades.

- Sem essa coroa, você, branquelo tem uma dívida para comigo, uma dívida histórica. E tire esse sorriso hipócrita do rosto.

Tentei explicar-lhe que Eu sou o criador, o que piorou ainda mais a situação.

- Muito mais grave, então você é o causador de tudo. O responsável geral.

- Mas filho, olhe o lado bom, a vida agora continua muito melhor, perfeita ...

- Lado bom se for pra você, fascista escravagista.

- Gente, desculpe interromper, - fala o segundo recém chegado. – Gostaria de saber aonde arrumo uma roupa, me incomoda estar assim nu.

- Sinto muito, mas aqui todos vivemos nus. Aqui não existe vergonha.

- Sei, sei ... não é vergonha, mas não gosto de mostrar meu pinto assim, ninguém vai acreditar que sou mulher, e por falar nisso, cadê meus peitos, não imagina como foi caro, silicone europeu e anos de hormônio. Não precisa muita coisa, uma sainha plissada já serve. Ah, um top também e se tiver um pouquinho de glitter eu agradeceria muito, - fala “ela” com um trejeito estranho.

- Sinto muito, mas todos vem pra cá no original, todas mudanças, acréscimos ou decréscimos ficam lá na terra. E como já disse, aqui é a terra da verdade, nada se esconde.

A terceira, uma mulher ruiva, pequena, dá um sorriso irônico. Mulher, você? Com um pinto desse tamanho? Está mais pra ator pornô. Vem ver de perto como é uma mulher de verdade. E você velhote, - falou virando-se para Mim, - desculpe a sinceridade, mas errou feio ao criar essas coisas. Tivesse criado apenas mulheres, o teu mundo não seria esse caos.

- Mas, se Eu tivesse criado apenas mulheres, vocês não poderiam se reproduzir e o mundo acabaria.

- Você não é o bam bam bam? Porque não achou uma solução? É o que sempre falo, deixe as coisas nas mãos dos homens e só sai merda. Aff.

- Vocês não preferem descer até o vale e se divertir com todos? Vejam como estão alegres.

- Alienados, diz o negro.

- fascistas, diz a mulher.

- transfóbicos, diz a mulher XY.

Com um suspiro, em minha suprema magnitude, penso em como deixar esses três infelizes com o espírito e sentimento de bem estar, tira-los do inferno em que vivem. “Inferno”, isso, acabo de ter uma epifania. Eles sempre acharam que o inferno existe, porque não torna-lo real? Com uma rápida conversa com primeiro anjo, Lúcifer, transporto todos ao recém criado inferno, especialmente para eles. Queimando em seus caldeirões de óleo fervente escuto ao longe os seus felizes gemidos e xingamentos:

- eu sabia, capeta fascista, só estou aqui porque sou mulher e aquele velhote misógino não aceita nossa superioridade.

- nem a minha cor.

- nem a minha opção, quem Ele pensa que é para escolher por mim.

Tranquilo e feliz com minha criaçao, começo a descer para junto da multidão quando surge mais um. Pequeno, pelado, peludo, com um bonezinho vermelho com uma estrelinha.

- ei, cumpanheiro, sabe onde fica a sede do sindicato daqui?

Nilo Paraná
Enviado por Nilo Paraná em 07/03/2018
Reeditado em 07/03/2018
Código do texto: T6273170
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