Ravenala nunca fora a Campo Grande. Sua mãe mudara-se de Minas ainda nos cueiros, mas... memórias passadas, trazem-lhe à  lembrança grandes enchentes do rio  Saracura. Essas imagens, mais tarde  transferidas por Corina para o córrego Maracanã, invadiram o inconsciente da neta, e por iniciativa involuntária, navegavam em seus sonhos.
— Vi este lugar antes, disse ela ao pai, na primeira  vez  que estivera na Quinta da Boa Vista.
— Minha filha! Nunca vieste aqui!  Também ainda não foste a Campo Grande, mas, um dia irás conhecer a primeira morada de teus ancestrais e verás que muita coisa vai parecer-te familiar.  Quando o pai lhe dissera isso, ela ainda era pequena e não compreendeu. Mas criança não questiona o inquestionável. Simplesmente,  deu uma mordida no algodão-doce e pediu água de beber. É certo que a palavra é capaz de transformar sonho em realidade, e  ficção em verdade absoluta. Se viajarmos  no fantástico mundo da imaginação, torna-se possível penetrar o insondável. Tudo depende da tinta com que se pinta a aquarela da vida.  O bom orador transforma palavras  em imagens; e o sonhador, fantasias em realidade.
— Em teu passado, nada  podes mudar, mas podes reescrever os próximos capítulos da história, submetendo-a à experiência dos erros cometidos.
Fechou o arquivo de suas lembranças e questionou: “ Como o tempo voa!... Se o pai fosse  vivo estaria com cem anos. E ‘vô’ Generoso, centro e trinta e seis. Generoso não conheceu telefone sem fio, nem celular, nem máquinas que gravam imagem e voz. O povo   daquele tempo conheceu outra tecnologia, guardadas as proporções de tempo e cultura, conviveu  com inventos rudimentares e com  a tecnologia, até então considerada sofisticada.  Para  eles, no entanto,  conversar com os mortos era apenas expectativa e falácia dos espíritas, rejeitada pelo cristão.
— Ravinha! Não se pode evocar os mortos.  
— Claro! A Igreja sabe que o rei Saul evocou o espírito de Samuel, e isso não agradou a Deus. Há muitos espíritos vagando pelos ares! um deles pode vir transvestido de lobo em pele de cordeiro, e enganar a muitos, fazendo-se passar por aquele que foi evocado. Nisso, a Igreja é prudente. Não convém chamar os mortos à presença dos vivos,  porque não temos certeza se aquele quem goza, ou não, da intimidade com Deus
— Queres dizer que...
— Quero dizer que não devo dizer. Se estiverem em bom lugar, trarão paz, tranquilidade etc... Senão...bem o senão prefiro não dizer. É desagradável, terrivelmente desagradável...
 Ravenala nunca intentou contato com os mortos usando o   psicoteledecodificador.  Ela desejava muito falar com o  ex-professor de Português, porém, o contato entre vivos e mortos só é possível se houver aquiescência de ambas as partes e o padre Davi jamais daria a mão à palmatória. Jamais concordaria que isso fosse  possível, ainda  no 2057.
— Esqueceste de anunciar o principal.
 —O quê?
 — Mesmo que as partes estejam acordes em se comunicarem, é preciso que haja permissão de Deus.
—  Não é necessário dizer isso... Nada acontece sem a permissão de Deus.
A aproximação de uma gaivota interrompeu o discurso sobre o contato com os mortos.
— Veja Ravinha, uma linda gaivota pousou no capelo do navio!
— Nunca tinha visto uma gaivota tão bonita. É diferente de todas as demais, tem penas reluzentes...O branco e preto das vestes lembra o traje de uma freira.
— Pousou  outra no mesmo capelo. Mas tem as cores azul e branco, diferente da outra...
— Parece que está com as vestes da Virgem Maria.
— Foi essa a imagem que me veio: o azul do céu. E o branco da  paz.
— Azul da cor do mar. E tu me dizes que aqui não é o céu?
— São os mimos de Deus. A vida contemplativa nos oferece momentos de céu aqui mesmo na terra.
— Sim, criamos nosso mundo com aquilo que se move dentro de nós mesmos. Céu ou inferno, cada um constrói o mundo no qual orbita sua alma. Faz parte da liberdade de escolha.
 
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Adalberto Lima, trecho de estrela que o vento soprou.