Mal cai a tarde, a noite cobre o céu com o negrume de seu manto. A vela tremeluz fantasmagórica e vultos vagueiam na antiga senzala.


— Tem dinheiro enterrado na tapera. Tem visagem... assombração. Pururuca viu uma luzerna — disse João Velho. 
— Pururuca não é certo da cabeça, quem acredita nele?
 — A mãe! A mãe dele  disse que também viu.
–— Mas a mãe de Pururuca morreu.
— Morreu sem libertar a alma que enterrou dinheiro na casa velha. Se ninguém desencantar o tesouro, a alma fica presa nele. Tem que arrancar o cabedal, senão a alma  fica vagando, sem rumo e sem luz, sem direção...
— Uai, Nhô! Debaixo do pé de oiticica também se vê luz de visagem vagando... Muita gente já viu.
— Corina disse que é fogo fátuo. Gordura da oiticica ou de algum animal morto.
— Pode ser. Mas quando era pequeno, José Lino ouviu uma criança chorando, na tapera da senzala,  e fugiu correndo. Sá  Corina batizou o menino depois de morto e enterrado, e ninguém mais ouviu aquele choro.
— Preste atenção, anacoluto! Isso não é coisa de se contar na frente de criança? — diz Pururuca com a voz entrecortada de medo.
    — Vai chover, acresce João Velho. 
— É chuva de feijão da seca — disse pai Luís já pensando em plantar feijão branco — dá ligeiro... ligeirinho...
— Grossa desse jeito?... 
— Não se deve reclamar da natureza, retrucou o enxadeiro.   
— Uai em que mês nós estamos?
— Setembro.
— Então é chuva de broto.
— Corre água na bica.
— Deixa correr...                       
O xixixi da chuva  quebra, suavemente, o silêncio da noite.  Gotas miúdas caem, escorrem para o rio. Naquele tempo chovia, o sol se escondia semanas a fio. O rio transbordava. Os meninos se banhavam nas águas barrentas com as vergonhas de fora. Não tinham maldade. A infância era ingênua e bela como as flores que as crianças colhiam para enfeitar o presépio do Menino Santo. O trovão trovejava e trazia coalhada escorrida, escorrendo numa bola de pano, pendurada no travessão da cozinha.   Mal surgiam os raios da primeira aurora, o vaqueiro  trazia o  bezerro para apojar.   Finda a primeira labuta, o dia era todo amanhecido. Mais um dia contado.
— Setembro entregou o mês com chuva. Vamos ver se outubro garante o tempo.
— Pela experiência dos mais velhos, até dia de finados é garantido.
Mais mês  vivido e se completam os dias dela.  Apinajé geme em dores de parto. Sobre o telhado da casa do vaqueiro, acauã solta seu canto gargalhado, agourando má sorte.
 — Gêmeos — disse a parteira — índio gêmeo traz mau agouro: um tira a sorte do outro.  Onofre coça a cabeça... Generoso Batista  sugeriu os nomes  Caim e Abel.  Corina protestou.
— Está louco, Batista! Esses nomes têm sombra de maldição. Abel é assassinado por seu irmão Caim. E Caim, condenado por Deus a ser fugitivo e errante sobre a terra.
— Conflito entre gêmeos sempre existiu. Minha santa. Será que você não entende que toda nação indígena é descendente de Caim? Quando Caim foi expulso e obrigado a ocultar-se da face de Deus; Caim ocultou-se na mata.
— Esse barco em que navegas  não  te leva à terra firme. Arrenego! Esaú e Jacó, teria mais sentido, pois um dos filhos da índia é muito cabeludo e o outro tem uma lesão  no músculo da coxa. Vai puxar da perna quando crescer...
Nhá Santa passa flanela úmida no móvel do quarto. Ninguém se incomoda com sua presença muda, até que ela dá ‘vassouradas’ na conversa.
— Cosme e Damião é nome bom para gêmeos!
— Sê  besta, Nhá! Não se tem certeza, se realmente, Cosme e Damião eram  gêmeos. Eles tiveram morte semelhante, passaram por igual martírio e talvez por isso sejam tidos como irmãos gêmeos. Pode ser que nem sejam parentes...
Generoso  entendeu que deveria dar nomes a seus bois. Às crias dos outros, seus donos o fizessem. Onofre não opinou. Não escolheu nomes. Só pensou:  Se Apinajé ainda morasse na aldeia, provavelmente, os filhos seriam sacrificados.  A própria mãe teria que matá-los pela dupla ‘culpa’  de serem gêmeos, além do mais,  um deles tem defeito físico. Para seu povo, um só desses motivos é suficiente para levar à morte um recém-nascido indígena.
Robert protestou:
— Exclua esta parte, Ravenala. O sertanista quando  catalogou etnias indígenas que praticam infanticídio no Brasil, não arrolou os maxacalis.
— Preciso ser fiel ao texto original.
— Não há texto original.
— Temos uma gravação em pesquisa de campo, inclusive, entrevista com Smith. Ela conviveu com  índios maxacalis que se hospedavam na pensão Sônia em Montes Claros.
— Desculpe-me! Achei que falavas do Roger Smith Hotel.
— Para Bob. A lenda se constrói com retalhos da história.
Nhá levou os meninos para mamar na mãe. Apinajé olhava os filhos, cheia de compaixão: O pai não guardou resguardo de três meses. Pai de índio comeu  carne vermelha. Curumim vai  morrer. Homem  branco não apanha costume de índio... Até fura as orelhas, come cuscuz, e gosta de aipim. Mas crença, não!... Não agrada espírito da selva. Quando homem branco fuma diamba,  não conversa com seus ancestrais. Mata seu semelhante. Ser índio é bom! Acauã é má.
— Acauã vai levar curumim para morar com os espíritos da selva...
Corina ergue a voz, lenta e gradualmente.
— Teu ventre gerou duas nações, dois povos divididos pela fé. É preciso que sobrevivam,  para que o bem possa  extinguir  o mal.  Eles são filhos de cristão batizado, com  índia pagã.
— Sou batizada. A senhora não se lembra? O padre me batizou na festa do vaqueiro. E me casou com Onofre. Quero dizer, eu me casei com Onofre.
Onofre  mostrava-se preocupado. Coruja rasga-mortalha voou  sobre o telhado, produzindo som semelhante ao de um pano sendo rasgado. Prontamente, respondeu o dono da casa: ‘Aqui não tem tesoura nem pano, não tem ninguém morando aqui’.
— Rasga-mortalha tinindo asas no telhada no dia em que nasce menino, boa coisa não é, disse Nhá Santa.
— Para de conversa tola, Nhá! Isso é abusão do povo.
 Nhá baixou as vistas. E saiu. Não devia discutir suas crenças com Euzébia, cujo  marido morara muitos anos em seminário de padres no Rio de Janeiro e sabia das coisas.

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Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."
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