MARDELEY

Mardeley, diz a placa de madeira gasta, exposta ao tempo e ao descaso, já sem verniz, se é que um dia conheceu algum. Com essa visão se termina de uma vez por todas a angústia do não chegar. A estrada de terra, menos estrada do que terra, que entre crateras profundas e mares secos mais se parece com a superfície lunar, acaba numa pequena cidade de casas humildes aglomeradas em torno da praça central, as ruas que se cruzam em ângulo reto, de tão poucas não chegam aos oito por oito de um tabuleiro de xadrez, no máximo um jogo da velha. Mardeley, como em meus sonhos, o lugarejo que eu, deitado em minha cama, esperava encontrar quando viesse o sono, toda noite, e nunca acordava decepcionado. Ainda que esta poeira jamais tenha antes sentido o peso das minhas botas ou empedrado meus pulmões, eu saberia dizer com precisão onde fica a barbearia, onde senão no número 121 da segunda rua à esquerda, ou o armazém de secos e molhados, no terceiro quarteirão da via transversal, abaixo do sobrado em que mora o prefeito, e o banco defronte ao coreto.

O portal me dá as boas vindas, agradeço e vou entrando. Não adianta apenas saber, por instinto ou premonição, onde está cada coisa, é preciso conferir, bater às portas e certificar-me de que na casa que julgo do confeiteiro mora de fato o confeiteiro, e não o vigário ou o juiz de Direito. E, sobretudo, encontrar Mardeley, a mulher de cabelo de fios de ovos e sorriso de jambo, vermelho e doce, mas amargo se colhido fora da época. Pois a fruta um dia amadurece, é tempo de colheita, e para isso errei por asfaltos, barros e lamaçais, guiado por um mapa escrito com a tinta invisível do subconsciente. Com passos calculados, nem tão largos que transpirem pressa, nem tão curtos que eu tarde a chegar, avanço firme em direção à praça.

Mardeley, a cidade, eis diante de meus olhos; Mardeley, amante das noites solitárias, também há de existir. Seu endereço, contudo, é refém das masmorras do Senhor dos Sonhos, trancafiada na escuridão e no frio, e a chave, envolta em densa névoa, nunca pude encontrar. Agora que aqui estou, mesmo que seja necessário tocar de mansinho a campainha ou invadir de supetão, atrás de alguma porta há estar Mardeley.

São nove horas, aponta o relógio e soam os sinos da igreja, cuja torre, ponto mais alto de muitos e muitos quilômetros de raio, pode-se ver à distância. As pessoas começam a sair de casa, um aqui, outro acolá, as ruas se enchem, o barbeiro, a manicure, o professor, a merendeira.

Olá, senhor boticário, chamo de uma calçada a outra, e noto sua atitude de estranhamento. Ressabiado, suspende o caminhar, olha em minha direção e em segundos seu rosto muda de Quem pode ser esse sujeito, a testa franzida e os olhos apertados indicando o grande ponto de interrogação sobre sua cabeça careca, para Não há de ser comigo, os lábios tensos de um dos lados, o sinal de não com a cabeça e o movimento de voltar ao seu caminho. Espanto-me que não me reconheça, não são dez metros a nos separar, e eu não mudei tanto assim desde a última vez que nos vimos. Ele tem o mesmo inconfundível bigode de pontas retorcidas, sobre um nariz que, de tão pontudo, ameaça fugir à máscara. Cruzo a rua para falar-lhe mais de perto, sou metralhado com uma saraivada de perguntas assustadas, Quem é você, Por que está me seguindo, Como sabe que eu sou o boticário? Lembro-me então de que o sonho é meu, e provavelmente ninguém ali sabe mesmo quem eu sou. Desculpe-me, senhor, digo, apressando-me para desfazer o mal-entendido, tomei-o por um amigo de infância. O homem parece aceitar as desculpas, está mais calmo, embora desconfiado, e segue seu rumo enquanto eu me viro e ando no outro sentido. Preciso ter mais cuidado.

As botas pesadas fazem barulho quando tocam o chão. Um passo, dois passos...

Espere um instante, escuto às costas, é o senhor a se voltar a meu encontro, pensativo, a mão cofiando o bigode, como a se recordar de um passado que há muito se foi, você não é... É você, sim, seu cachorro pulguento! O boticário se descontrola, aponta os dedos em riste, um por um, para o meu peito, e se fixa no dedo médio, aos brados em nomes impronunciáveis. Minha sorte é ele estar no terço final de uma vida longa, pois se mete a ensaiar golpes de pé e mão, mas acerta a maioria no vazio e logo cansa. Você roubou a minha filha! Como pôde retornar depois de tudo que me causou, cara-de-pau?

Perdão, meu senhor, tento me explicar, entre um palavrão e outro, no instante em que ele pára e enche os pulmões de ar, antes de partir para mais um xingamento, é minha primeira vez nessas paragens e não faço idéia de quem seja sua filha. Pois então, estrangeiro, como me conhece, ele pergunta, apesar da idade e do estado de nervos o senso de lógica é profundo, e sabe que eu sou o boticário? A palavra me escapa, não tenho o que lhe dizer, Simplesmente sei, eu diria, mas a resposta não apagaria a brasa; pelo contrário, mais provável é que atiçasse o fogo e o transformasse em incêndio de proporções continentais. Não vendo oposição de minha parte, prossegue logo em seguida, na mesma incursão respiratória, Mardeley é o nome da minha filha, e você a levou nas costas feito saco de batatas. Como esquecer do homem que desonrou minha família? Onde ela está? O que fez com Mardeley?

Mardeley, o nome, referindo-se à mulher e não à cidade, ilumina-me o coração. Meu rosto se abre em sorriso quando eu entendo de quem o transtornado homem está falando, Eu a amo, senhor boticário, desde o início dos tempos, desde antes da primeira fagulha explodir em big bang, e ofereço o resto de meus dias a Mardeley, todos, até que o universo se contraia em uma casca de noz. Nada do que eu falo parece surtir efeito, o homem está irredutível; nada o impede de pegar o revólver da cintura, e eu sequer tinha reparado no volume sob a camisa, e fazer uso da arma contra o meu peito. Socorro, grito que não atire, pelo amor de Deus. É tarde demais.

Assustado, acordo. Um estranho cheiro de fios de ovos estragados atravessa a atmosfera pesada do quarto e chega ao meu nariz ao ritmo das várias voltas velozes do ventilador. Bocejo, as lembranças do sonho ainda ressoam. Olho para a esquerda e para a direita, procuro de onde vem o odor nauseabundo. Mardeley, ao meu lado, meu amor, acorda, não pode ser verdade, o que houve, responda, por favor, jaz vermelha feito jambo, mas queimado, a pólvora ainda a se fazer sentir no ar.