Muita coisa pra aquele dia

Acordava um pouco mais cedo que o comum. Teria que arrumar a casa, basicamente ajeitar as coisas em seus devidos lugares. Como meu espaço era pequeno, seria uma tarefa para ser cumprida nuns 40 minutos, fora o fato de precisar de mais alguns para me arrumar e tomar um café rápido. Pelo combinado teria que estar num ponto não muito distante. Ontem, um conhecido meu arranjou um serviço que deveria durar uma semana, talvez menos ou talvez mais. Não havia me passado muitos detalhes, mas enfatizado que era algo bastante complexo e sigiloso, com um bom retorno financeiro.

Num bom ritmo cheguei ao local do encontro. Pouco antes havia notado que o sapato que eu usava não era o melhor para a função que iria exercer, dando um certo arrependimento não ter dado meia volta e ter trocado. O ponto de encontro era um bairro residencial, numa rua coberta de folhas, um lugar bastante calmo. Lá me aguardava duas pessoas, do qual as avistava de longe. Estavam próximos a dois carros que pela posição, só podiam ser deles. Não muito atrás se aproximava outro rapaz, que aparentava estar lá pelo meu mesmo motivo. De antemão fui avisado que mais pessoas estariam por lá, sendo igualmente solicitados como eu. Minha atenção foi para os dois dos carros, que prontamente me avistaram também. Um deles, um homem de uns 50 anos, robusto, careca e de bigode, pegava a frente das ações. Do lado dele o outro homem era como um apoio, se limitando a perguntar meu nome e do outro rapaz que se aproximava. Era alto e magrelo. Seu óculos de armação pesada parecia como um escudo, talvez uma forma dele se esconder de olhares curiosos e questionadores. O sobretudo negro o deixava mais impessoal ainda. Tinha também um jeito bravo.

Após esse rápido contato entramos todos numa velha kombi, menos o homem de óculos, que se adentrava no outro carro próximo de nós. O rapaz que assim como eu vinha interessado no serviço, sentava na terceira fileira do velho veículo. Tinha pele negra, cabelo raspado, olhar sério e naquele momento demonstrava um certo medo nos olhos. Pelo olhar sério e distante dele, do qual eu reparava no retrovisor interno do carro, sentia sua dificuldade em disfarçar a ansiedade pro que viesse acontecer. Era meio óbvio que era sua primeira vez lá, ou uma das primeiras, naquele tipo de serviço. Não havia notado que no veículo já havia um motorista, um homem rechonchudo, bigodudo e de bochechas rosadas e volumosas. O trajeto era por uma área calma, que eu conhecia superficialmente. Ninguém falava nada, apenas o careca que as vezes olhava o pequeno e robusto celular e resmungava algo, como que esperando o aparelho interagir. Conseguia imaginar uma linha tênue entre o careca e o celular; os dois eram robustos e pareciam ser de épocas atrás , como de uma ou duas gerações.

O local em si era um prédio em construção, do qual haviam parado os serviços do acabamento. Muitas paredes inclusive estavam parcial ou totalmente abertas. Uma cerca provisória fortemente vigiada circundava o prédio e um galpão ao lado deste. Impressionava o número de pessoas lá dentro, que iam de soldados armados, civis com planilhas e eletrônicos variados e um outro grupo de manutenção. Perto inclusive da entrada uma dupla soldava alguns metais, do qual não imaginava do que se tratava. Nos levavam num ambiente com roupas e armamento abundante. Foi detalhado o que havia acontecido e nossa função por lá. Isso tudo deve ter sido no máximo nuns 40 minutos.

* * *

Eu e um grupo grande adentramos no prédio. Todos armados e esperando que todas as situações fossem possíveis de acontecer. O careca, que me recrutou era o líder do grupo. O rapaz de olhar sério que veio conosco também estava, parecendo agora incrivelmente mais descontraido. Os ambientes dentro do prédio eram bastante espaçosos, e andavamos cautelosamente entre eles, milimetricamente observando qualquer potencial de perigo. Não foi detalhado o que iriamos enfrentar, que deixava o clima ainda mais tenso. Alguns dos ambientes estavam intactos, enquanto outros a aparência era a pior possível, com inúmeras avarias onde a vista pudesse focar. Aparentemente, algo entrava no prédio e eliminava literalmente todos por lá. Por uma das janelas eu observava que o prédio estava completamente cercado, por todos os lados. O que quer que fosse o autor daquilo teoricamente estava ainda dentro, por mais improvável que fosse. De outra janela via uma segunda equipe. Eram homens armados até os dentes, atentos assim como nós para toda e qualquer coisa. A trilha de destruição aumentava em quantidade nos três últimos cômodos que nossa equipe percorria. O careca parecia mais tenso, e apesar dos pingos de suor que escorregavam em seu rosto branquelo, sentia um tipo de prazer naquela situação. Não conseguia imaginar ele lavando louça ou passeando com o cachorro na rua. Menos ainda ele indo num restaurante e juntando moedas para pagar a conta. Era um homem brutalizado demais para determinadas situações.

Uma pessoa de nossa equipe, de boa estatura, forte, negro, de olhar direto e extremamente concentrado nos ordenava parar. Foi um gesto inconsciente de sua parte, como se sentisse um perigo por perto. Estavamos numa sala grande e escura, com pedaços de móveis e objetos por toda parte. Havia uma abertura , no vão de uma porta arrancada, do qual vinha um som que não entendiamos. O homem que agora assumia as ações passava um velho barbeador no queixo, um tipo de estranho ritual no clímax do perigo. Repentinamente ele parava e fazia um gesto para todos se espalharem. O que quer que fosse, sabendo ou não, vinha ao nosso encontro.

* * *

O que vimos desafiava a lógica de qualquer mente sádia ou de qualquer raciocínio lógico. Era uma criatura grande, que muito se assemelhava a um urso. Sua cabeça e face eram um crânio, com pequenos chifres. Era lento e parecia ser muito forte. Não sei como enxergava ou cheirava, pois não conseguia ver nele olhos ou nariz. Fazia um barulho, um uivo, que se parecia a um pedido de socorro. Via de de seu ângulo apenas dois dos integrantes de seu grupo. Entre eles, o homem do barbeador, bem ao meu lado. Ele o observava esperando algum comando, que não vinha. Seu olhar pesquisava aquele estranho ser, que ninguém compreendia. Não sei bem como, mas alguém da equipe caia no chão, repentinamente. Ouvia alguém cochichando que o que havia caído não foi a toa: no desespero para se esconder da criatura ele havia subido numa cadeira, e o estranho rabo do monstro acidentalmente tocava a cadeira, derrubando o assustado rapaz. Rapidamente, a estranha criatura o pegava pelo pescoço, chacoalhando-o como um cachorro faria com um pedaço de pano. Alguém atirava no monstro. Daí pra frente a situação não tem mais uma descrição exata da totalidade dos eventos. A corpulenta criatura se remexia jogando os móveis como bolas de sinuca numa mesa. Tiroteio e gritos se seguiram, numa ordem nada aleatória. Algo me acertava na cabeça, com a perca da consciência instantânea.

* * *

Não lembro o tempo que havia ficado apagado. Talvez uma meia hora, ou mais. O que acho que havia me acordado era uma mesa repousada sob as costas da minha mão esquerda. Creio que era a mesma que me tirou a consciência, dado uma pequena faixa de sangue na parte próxima de mim. Fui aos poucos me relembrando quem eu era, o que fazia ali e o que havia acontecido. Sentia um cheiro diferente, como de uma peça metálica, de algo antigo, um tipo de cheiro até enjoativo, mas inconfundível, caso já tivesse sentido outras vezes, que não parecia ser o caso ali. Não chegava a ser algo desagradável, mas não era reconfortante. Esse cheiro era da criatura, passando por cima de mim, me farejando, analisando. Ainda recuperava minhas forças quando ele uivava um som que lembrava um pedido de socorro. Era mais assustador próximo do que a distância. De todo modo, não achava que ele queria me matar, pois bastava ter pisado em alguma parte minha para ser facilmente esmagado. Parecia me estudar. Depois, e aos poucos, via que como eu haviam mais pessoas deitadas no chão. Não podia me mexer muito, primeiro porque não conseguia mesmo, e segundo, pois não sabia qual a reação daquele animal, caso eu me mexesse. Não sabia se as outras pessoas por lá estavam desmaiadas ou mortas. De meu ângulo sequer sabia se eu próprio estava inteiro. Procurava pelo careca, pelo homem do barbeador e o outro rapaz que veio conosco na velha kombi. Ambos não estavam no meu ângulo de visão, o que em si era algo não muito animador. O momento mais tenso do dia ainda estava por vir. Sentia a pele dele, basicamente os ossos de sua face roçando as minhas costas. Curiosamente, eu não sentia sua respiração, nem o calor de seu corpo. Aquilo não deveria ser vivo, mas talvez algo paranormal, de outro planeta ou dimensão. Após me analisar e uivar um incompreensível socorro por três vezes, começou a se afastar de mim. Lhe chamava a atenção um barulho no cômodo ao lado, e ele ia com total interesse. Sentia em seguida uma agitação. Pessoas gritando e tiros sendo desferidos, sendo que não descartava a possibilidade de um deles me atingir, afinal de contas, eu era um alvo, e dos mais fáceis. Ia recuperando as forças aos poucos, e meu corpo que antes parecia pesar umas três toneladas, voltava para os clássicos 80 quilos. Quando havia me levantado, ainda lentamente, senti a besta vindo na minha direção. Não sabia ao certo, mas me parecia que ele fugia de algo do que mesmo vindo me atacar. Mas, de um modo ou de outro eu estava indefeso, com zero chances de esboçar qualquer defensiva. Mesmo assim, conseguia reparar num clarão atrás do monstro, que o arremessava em minha direção junto do que estivesse por perto. Curiosamente, o clarão não era acompanhado do barulho de uma explosão. Uma cadeira de rodinhas me atingia, me jogando no chão a segunda vez naquele dia. Quando me dei conta a estranha criatura estava parcialmente repousada num móvel, e um líquido escuro e viscoso, que saia de sua boca, caia em minha barriga. Era frio e secava rápido, formando uma fina camada que se rompia muito facilmente. Não sei ao certo, mas acho que mais uma vez havia desmaiado, não sei se pelo peso do monstro, pela rapidez que foi jogado para cima de mim, ou por ser muita coisa para aquele dia.