O CONTO DA CARGA

O peso em minhas costas me curvava por dentro. Quem de fora olhava não percebia, mas por dentro a mala pesada afundava minhas escápulas dentro da minha carne e tornava meu passo lento e doloroso. Eu me via tortuosa, me sentia corcunda, só era capaz de encarar o chão, não enxergava um palmo à frente do meu nariz.

Com o andar cansado, mirava a imensa porta. Eu sabia que deveria lá chegar. Rastejava, com meu destino a poucos passos, quando uma jovem passou rapidamente por mim, ela caminhava na direção oposta e emanava tristeza e solidão. Não via seu rosto, mas de certo, a moça chorava. Suas lágrimas eram profundamente enterradas em sua casca dura, a membrana, que inutilmente tentava as esconder, era fina demais. O desalento exalava a cada passo. Não sei precisar quanto tempo ela por perto ficou, mas o torpor que dela era lançado se aglutinou em minhas costas cansadas. Dobrei os joelhos de súbito, como quem tenta acomodar mais um saco pesado sobre a pilha, mesmo que lhe pareça impraticável. Não os estiquei por completo, não tinha mais volta, o difícil acabara de tornar-se insuportável.

Quase que sem levantar os calcanhares do chão, cheguei à porta, que rapidamente se abriu e me sugou vagarosamente para seu interior escuro. A porta fechou-se e me vi dentro de um grande elevador. Os botões pareciam não funcionar, tentei apertar todos os números, eu queria subir, o meu íntimo ansiava por aquela ascensão, mas nada se movia. Tudo permanecia igual e eu não era capaz de tirar aquele peso que me acompanhava a cada singelo movimento.

Percebi que estava presa, precisava de ajuda, o breu tomava conta do cubículo, e com o pouco de energia que me restava, apalpava as paredes ásperas, em busca de alguma possibilidade. Quando meus olhos se acostumaram com a treva, fui capaz de perceber que havia, no outro canto, um botão vermelho, meus pensamentos me diziam que a ajuda ali estava, mas minhas pernas se vergavam mais e mais a cada segundo. A dor era intolerável, a carga estava toda ali sobre minhas costas, me incapacitando de me mover. A fadiga me dominava, era tirana, implacável, não tinha compaixão. Meus olhos começaram a se fechar, redenção parecia minha única alternativa. Sucumbi, curvando-me mais e mais, lentamente. Nesse momento até ceder me torturava. Padecia a cada ínfimo movimento.

Eu já havia desistido, mas, de alguma forma, sabia que aquela carga não me pertencia, ela havia se acumulado durante meu caminho, mas eu não era seu senhor, não a criara e não a cultivara, apenas a carregava acumulando escombros sobre meus ombros doídos. A moça com pele de casca não fora a única. Lembrei-me do senhor com olhos tristonhos, da dama gananciosa, do muleque rancoroso. A consternação que eu sentia, o luto sem ação, o penar por penar. Cada grama tomava forma, tomava cor, ganhava nome. E, assumindo a identidade a qual eu lhes rotulava, pedaço a pedaço o vapor de vaidade se dissipava como se nunca ali estivesse estado.

A fumaça invisível desaparecia no ar, abrandando a curvatura de meu tronco. Comedidamente, minhas pernas começaram a se mover, minhas costas se esticaram com exceção da minha nuca que ainda insistia em se recurvar, havia ali um fardo que eu mesma teria que destrinchar. Me espichei e as paredes, que pareciam tão próximas, se esticavam, afastando-se umas das outras, elásticas. Me alonguei um centímetro a mais e, com a ponta do dedo indicador, alcancei o botão.

A porta se abriu, o lugar era outro, a claridade me cegou por um instante. Meu corpo estava leve, ninguém podia ver minha corcunda, nem eu a sentia mais. Talvez pudesse até flutuar. Estiquei a perna direita, pousando meus pés no chão logo após a risca no chão que marcava a divisa entre o elevador e o lado de fora, e me vi enfim livre, fora da caixa nefasta que me escravizara momentos atrás. Avistei um rapaz ao longe, não via seu rosto, mas sua aura era de amargura. Suas costas pareciam eretas, mas eu conhecia aquele peso oculto. De súbito, me condoí, senti a onda se aproximando, era maciça, encorpada, vinha em minha direção. Congelei, não sabia mais como me mover, apenas observei.

Fê Camargo
Enviado por Fê Camargo em 11/10/2018
Código do texto: T6473312
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